A Risada do Bode

segunda-feira, 24 de novembro de 2014 | Published in | 0 comentários

Nota do Autor: O presente conto é continuação de Sangue Negro (parte 01) e Crime Ambiental (parte 02) 

Brasília é uma cidade planejada, toda dividida em setores. Quadras residenciais tem seu lugar certo e entre elas as quadras comerciais, isso sem falar nas quadras destinadas a funções específicas. Uma dessas “quadras específicas” é um grande local chamado apenas de “Setor Policial”, pois num mesmo espaço delimitado podemos encontrar a sede da Policia Militar do Distrito Federal, a sede do Corpo de Bombeiros Militares do Distrito Federal, a sede do Departamento Nacional de Polícia Federal e a sede da Agência Brasileira de Inteligência. Se andar um pouco mais, por dentro desse setor, é capaz de encontrar alguns prédios que normalmente não seriam vistos num dia normal, e num desses prédios se passa essa história. Nas entranhas do Setor Policial, depois de atravessar uma longa avenida e fazer algumas curvas em ruas pouco movimentadas, você irá encontrar um edifício baixo, de cerca de três andares. A construção parece ser antiga, e em sua entrada está uma placa com uma inscrição que diz apenas “ABIN – Arquivo”, mas isso é apenas a fachada do que acontece de verdade nesse local.
Na verdade esse prédio esconde uma extensa instalação, com pelo menos uma dezena de andares subterrâneos, e no último andar, no mais baixo dos níveis, encontra-se o órgão vital da mais secreta organização do governo brasileiro. Eles não tem um nome fixo, seus relatórios são secretos e poucas pessoas, até mesmo do alto escalão do governo, sabem que eles existem. E no fundo de uma sala propositadamente mal iluminada, um general que já passou a idade de se aposentar fica polindo sua mão de mecânica de metal enquanto dá ordens que implicam a vida e morte de seres humanos e alguns outros que são quase isso.

Era o início da noite e o general estava polindo sua prótese. Apenas a mesa na ponta da sala estava iluminada diretamente e ele estava sentado atrás dela. A prótese brilhava refletindo a luz fraca do lugar. Era uma mão esquerda, de cor metálica prateada, e não tinha nenhum movimento sendo apenas estética. O general estava com um uniforme impecável, tinha um porte físico excelente para a sua idade além de poucos cabelos brancos bem aparados que contornavam a sua cabeça, já que em cima nenhum pêlo mais crescia. A chegada de seu convidado fora anunciada por um tenente que lhe auxiliava como secretário. O general se levantou, ajeitou o uniforme e foi dar boas vindas ao recém chegado:
- Boa noite Dr. Fernando Ueshiba.
- Boa noite General Otávio Castro
            No tom de voz utilizado e no cumprimento formal era possível notar o desprezo que sentiam um pelo outro. Ali estavam dois homens que se odiavam profundamente e não tinha a menor vergonha em esconder esse ódio. O Dr. Fernando Ueshiba, aparentava estar beirando os 50 anos, descendente de orientais como o sobrenome dava a suspeita, estava usando um terno bem cortado preto e na lapela brilhava em dourado a insígnia de Delegado da Polícia Federal.
            Sem muita cerimônia o Dr. Fernando se aproximou mais, sentou-se numa das poltronas em frente a mesa do general e disse ainda com tom de desprezo na voz:
- Por que o você me chamou aqui? Sabe que não temos nenhum assunto a tratar, não desde aquele episódio no Mato Grosso onde os seus monstros de estimação quase acabaram com a minha operação.
- Também não gosto da sua presença aqui Doutor Fernando e não o teria chamado se não fosse essencial – completou o general – Além disso, meus “monstros” ainda são mais efetivos do que qualquer um dos seus agentes.
            A tensão tomou conta do ar entre aqueles dois homens. Um breve momento de silêncio tomou conta da sala, silêncio que só foi quebrado com o som da mão metálica do general batendo na mesa. Logo após o general respirou fundo e começou:
- Pois bem Doutor Fernando. Eu sei da sua história, acompanhei-a de perto e apesar de não nos darmos bem, agora temos objetivos em comum.
            Nisso o delegado bufou e prontamente respondeu:
- Não general, não temos objetivos em comum. Você dirige uma agência secreta de psicopatas comprometidos em fazer a sua vontade. Já eu comando uma delegacia especializada, subordinada à Casa Civil e comprometida com a democracia.
- Ora Doutor, no fundo sabemos que nossa função é a mesma, e que a sua Delegacia foi criada apenas para afrontar a mim – Respondeu o general com um sorriso nos lábios.
            Antes mesmo que o delegado pudesse responder, o general completou:
- Doutor Fernando, eu conheço sua história, eu sei quem você é. Começou como agente da Polícia Civil de São Paulo a mais de vinte anos atrás. Durante o seu tempo de agente você se formou em direito e logo depois foi aprovado no concurso para delegado federal. Olha, seu caso é raro, pouquíssimos delegados podem dizer que se formaram em direito no Largo do São Francisco e você é um desses poucos.
            Para o Doutor Fernando era estranho ter um quase inimigo sabendo tanto sobre sua vida. E como delegado ele não poderia deixar por menos, e assim, com uma voz igualmente incisiva, retrucou ao general:
- Eu também conheço você general. Foi aprovado para a Escola Preparatória de Cadetes do Exercito, e com pouco mais de 18 anos saiu de lá direto para a Academia Militar das Agulhas Negras. Após 4 anos saiu de lá, no auge da ditadura, como Aspirante à Oficial e em pouco tempo já estava como tenente ajudando os outros militares a se manterem no poder. Ainda como tenente foi designado para acompanhar a caça aos guerrilheiros na Guerrilha do Araguaia e foi aí que você perdeu a mão.
            O delegado nesse momento bufou, e mantendo o tom sério de sua voz, continuou:
- Um jovem oficial é designado para interrogar uma pessoa que estava ajudando os guerrilheiros a se esconderem em meio ao pantanal. Como que por instinto, o jovem oficial viu uma pessoa, que parecia ser um homem de cabelos ruivos, e tentou agarrá-lo pelos cabelos. O oficial não se atentou para o fato de que o cabelo dele estava esvoaçante, mesmo numa noite sem vento e dentro de um barracão do exército. Também não se atentou que os pés do rapaz estavam virados para trás. Simplesmente foi lá, achando que ele era só mais um guerrilheiro, sem camisa, amarrado a uma cadeira. Tentou agarrá-lo pela nuca, puxando-lhe os cabelos e nesse momento a mão foi completamente carbonizada. Torrada até os ossos. E em meio a dor, apenas viu a criatura se soltar das algemas, como se nunca tivesse sido preso. Viu a criatura ir em sua direção, rir e desaparecer num piscar de olhos. Como visto General, eu também sei a sua história!
            O general tinha que admitir para si mesmo que estava impressionado. Lendas sobre como ele havia perdido a mão esquerda se proliferavam pelo exército, todas completamente erradas. Aquele homem ali na sua frente sabia a verdade e fazia questão de contá-la ali naquele momento.
            Então o general se levantou, colocou sua mão metálica sob a luz, fazendo com que brilhasse mais forte, e disse:
- Doutor, esse foi meu único erro. Carrego-o por toda a vida, e você sabe muito bem que nunca mais errei novamente.
            Ambos ali se sentiam desconfortáveis. Duas pessoas que investigaram a fundo a vida um do outro, que sabiam coisas que poucos sabiam. Cada um era um risco para o outro e mesmo assim estavam ali. Nesse momento, o general resolveu colocar as cartas na mesa e encerrar aquela discussão sobre quem sabia mais sobre o outro:
- Pois bem doutor. Apesar de você negar, nossos trabalhos são parecidos. Depois do meu contato com uma criatura que eu acreditava só existir em lendas, o Comando do Exército resolveu me colocar para lidar diretamente com esses monstros. E assim eu comecei a ajudar um outro general, que na época comandava esse departamento ainda no antigo SNI. Com a morte dele, eu assumi, antes mesmo do fim da ditadura. Algumas pessoas acharam que eu estava tendo influência demais nesse assunto, e então, no início dos anos 90 foi criada a sua Delegacia de Assuntos Sobrenaturais, ligada a Inteligência da PF. Você está nessa delegacia desde a sua época de academia, mas tem somente 10 anos que você chefia esse trabalho, logo eu tenho muito mais experiência que você. Tanto o meu departamento ligado a ABIN quanto a sua Delegacia ligada à PF se prestam para apenas um serviço: contenção.
            A expressão no rosto do Dr. Fernando era de estranheza, ele com certeza não via seu trabalho dessa forma. E diante disso o general continuou:
- Sim, fazemos um trabalho de contenção. Quando uma criatura sobrenatural começa a interferir demais num determinado local, é nossa vez de entrar em ação. Essas “lendas” acabam prejudicando a população normal, e nosso trabalho é garantir que elas continuem sendo apenas lendas para a maioria da população, e assim evitamos pânico. Porém, meu trabalho é mais amplo que o seu. Eu não me limito apenas a seres sobrenaturais, eu me livro de tudo aquilo que começa a chamar atenção demais. As vezes um serial killer some, um estuprador aparece morto dentro de uma cadeia, tudo isso é trabalho meu. Eu sumo com aquilo que a sociedade hipócrita se recusa a punir de verdade. E para tudo isso, eu tenho a ajuda dos meus operativos, por assim dizer.
            O rosto do general estava duro e frio. E continuou falando calmamente:
- Sei que você acha absurdo, mas nem sempre as regras conseguem resolver o problema. As vezes a única solução é sumir com aquele que causa a discórdia. Como eu disse, meu trabalho é retirar da sociedade de forma definitiva aqueles que atrapalham o status quo ou que chamam atenção demais sobre si. Um assassino que se recupera ou um ser sobrenatural que quer se esconder dos seres humanos não me incomoda, mas um serial killer prestes a ser solto unicamente por uma limitação ridícula de 30 anos de prisão ou um Pé-de-Garrafa matando e arrancando a língua de seres humanos, isso passa a ser problema meu e eu resolvo do meu modo. E é por isso que lhe chamei aquiDr. Fernando, você não está aqui por conta de seu trabalho na PF, mas sim por algo que lhe atormenta desde os seus anos como agente da Polícia Civil em São Paulo.
            Nisso o general estalou os dedos da única mão que lhe restava. Do meio das sombras do gabinete mal iluminado saiu um jovem negro, aparentando ter 17 anos. Esse jovem possuía um pequeno fiapo de barba negra crescendo no queixo, usava um terno completo de excelente corte e que não condizia com sua idade aparente. Sobre o bolso do paletó havia um bordado em dourado, três estrelas, formando um arco. Ele carregava uma pasta nas mãos. O delegado olhou de soslaio para o jovem, e a raiva transbordava em seus olhos, e nisso disse entre dentes num tom de voz carregado de desprezo:
- Bode!
            Calmamente o jovem virou para o delegado e disse num tom cortês:
- Senhor Fernando – cabe aqui mencionar que ele enfatizou cada sílaba da palavra “senhor” – Me chamo Emiliano Cândido da Silva, esse nome pelo qual o senhor me chamou não me agrada. Prefiro ser chamado de “Dr. Emiliano”, pois após todos esses anos, doutorados não me faltam, ao contrário do senhor bacharel em direito.
            Sem se importar muito com a reação do delegado federal, Emiliano jogou a pasta em seu colo e continuou:
- Como o senhor sabe, eu dispenso apresentações. Essa pasta em seu colo é a ficha criminal e algumas informações de José Caetano Ferreira Sousa, conhecido como “Terror do ABC”. Nos anos 80 ele foi conhecido por seqüestrar, violentar e matar jovens no grande ABC paulista. E como o senhor também sabe, foi o senhor quem localizou e capturou esse bandido ainda na sua época de policial civil em São Paulo. Ele foi considerado insano pelo judiciário e recolhido a um manicômio, porém em alguns meses ele completará 30 anos de reclusão e terá de ser solto, conforme entendimento do STF. Porém, ele mesmo já afirmou que assim que sair, a primeira coisa que fará será matar e violentar novamente. O general me incumbiu de coordenar a missão que levará a morte desse bandido antes mesmo que ele faça mais uma vítima, porém não temos informações sobre para onde ele irá após sua saída do manicômio judicial. O que nos leva ao senhor, a única pessoa que ainda tem informações sobre esse caso e tem contato com os familiares dele. Pelo que sei, as pistas que levaram a captura foram dadas por pessoas da família desse “terror”.
            O Delegado estava perplexo. Uma informação como essa com toda certeza teria sido difícil de conseguir. Ele ainda guardava na cabeça o nome de alguns parentes do “Terror do ABC”, uma mãe já idosa e alguns irmãos que simplesmente resolveram esquecer a existência desse membro da família. Era uma família que já havia sofrido muito, tendo de mudar de estado para se livrar da imagem que o assassino tinha deixado. Viviam agora no interior da Bahia e apenas o Delegado sabia os seus nomes de cabeça.
            Eram nomes que ficaram na sua memória. Difícil esquecer uma mãe, que desesperada comparece a uma delegacia de madrugada para denunciar o próprio filho, assassino e pedófilo. Ele, escondido dos demais colegas da policia, ajudou aquela senhora e sua família a abandonarem o ABC e começar de novo em outro local, mas isso ninguém da polícia sabia. Eles ainda trocavam esporádicas cartas. Ou alguém da família tinha falado demais ou alguma dessas cartas havia sido interceptada, não tinha como saber.
            Restava apenas esquecer como eles tinham aquela informação e agir de verdade conforme sua consciência. Nisso, o Delegado disse:
- Não vou colaborar com vocês. Vocês me pedem para que eu ajude em um assassinato a sangue frio. As leis podem não ser perfeitas, mas estão ai para serem cumpridas, ainda mais por mim, um delegado da PF. Não vou compactuar com isso. Eu faço um trabalho, mas ajo dentro da lei e seguindo as regras. Saber que vocês me pedem que colabore num assassinato vai contra tudo que eu acredito. Prefiro o peso na consciência do que matar alguém pelo simples risco dessa pessoa existir. Não é isso que eu aprendi na faculdade, não é isso que aprendi com o direito criminal e não é isso que aprendi em meus anos como policial.
- Ora Doutor. Essa não deve ser a primeira vez que o senhor precisa violar alguma regra. Só pedimos algumas informações, suas mãos continuarão limpas. – Disse Bode com um sorriso nos lábios.
- Não!Vocês simplesmente acabaram me provando que eu estou certo. O General aqui realmente comanda um grupo de monstros sanguinários. Não vou ajudar vocês. Você Bode, e seus amigos não são diferentes das criaturas que capturamos. E saibam que pela forma como vocês agem, mais cedo ou mais tarde eu receberei ordens de vir atrás de vocês.
            Nisso, Dr. Fernando Ueshiba jogou a pasta no chão, levantou-se e saiu da sala, escoltado pelo silêncio das duas outras pessoas ali presentes.

- Eu sabia que ele iria se recusar a ajudar.
            Foi o que Bode disse, com um leve sorriso nos lábios.
- Se sabia que ele não iria ajudar, por que me pediu para marcar essa reunião com ele?
- Ora general, parece que você não sabe se divertir. Ao ver as notícias na televisão sobre a morte do “Terror do ABC” ele saberá que fomos nós que fizemos e irá ficar se remoendo por não ter tentado nos impedir.
- Você é louco. Todo mundo acha que você é o mais sensato dos três, mas você é o mais cruel.
            E após dizer essas palavras, o general sentou-se em sua poltrona e riu, dizendo:
- É por isso que gosto mais da sua companhia do que da companhia dos outros. Mas não vá contar isso a eles.
- Eu sou um gênio louco e você gosta disso, general. E tudo é culpa de um velho padre. Na fazenda todo mundo sabia que eu era mais esperto que os demais, mas quis o destino que um velho padre resolvesse me ensinar a ler e escrever, o que aprendi bem rápido. Quis o destino também que um bando desgarrado de lampião fosse até a fazenda onde eu estava com o padre, e quis ainda o destino que eles precisassem de alguém que soubesse ler as instruções de um mapa...
- E eles te obrigaram a ir com eles e você estava com os outros dois quando do meteoro. E você usou todos os seus anos a mais para estudar sobre tudo e mais um pouco. Você tem doutorados em dezenas de áreas diferentes nas mais diferentes universidades do mundo. Emiliano, eu já ouvi essa história dezenas de vezes.
- Ahh general, vocês militares tem o problema de sempre irem direto ao ponto. Em pouco tempo o bandido vai sair livre, eu vou matá-lo e com isso mexer um pouco com a cabeça do nosso delegado pelo simples prazer de fazer isso.


No noticiário da noite de um grande canal de televisão a notícia foi a principal manchete. O Terror do ABC havia sido assassinado em Feira de Santana, interior da Bahia, menos de um mês após ter saído do manicômio judicial. O assassino era um jovem de 17 anos que ele havia encontrado na rua e tentou abusar sexualmente. Não precisa nem dizer que o jovem sumiu sem deixar qualquer rastro.

E vendo essa notícia, Emiliano Cândido da Silva, o Bode, soltou uma risada que ecoou por todo o apartamento funcional em que morava na Asa Sul em Brasília.