A Revolta dos Invisíveis

quinta-feira, 25 de novembro de 2010 | Published in | 0 comentários

As Lojas Minha Casa eram a maior rede de lojas de venda de móveis no Brasil. O problema é que “Minha Casa” era um nome que não representava a verdadeira natureza da empresa. O nome verdadeiro, ou melhor, vamos usar a nomenclatura correta: o nome empresarial era “Souza de Oliveira Utilidades” e o nome vinha do fundador da empresa, Afrânio Souza de Oliveira, que fundou a empresa ainda nos anos 30. Mas o mais importante pra história não é o sr. Afrânio, e sim seu filho, Evilásio Souza de Oliveira, que nos anos 60 transformou cerca de 5 lojas espalhadas por São Paulo em um império, com lojas espalhadas por centenas de cidades em todos os estados do Brasil.

O gênio para negócios de Evilásio vinha de sua admiração por empresas norte-americanas. Sempre pensando em formas de cortas custos e aumentar lucros, instalando novos modelos de gestão ao ponto da Souza de Oliveira Utilidades ter se tornado referência de administração e gestão em todo o mundo.

Evilásio era alguém que se orgulhava de sua vida e de todas as conquistas que tinha, de toda sua riqueza. Sua única decepção era seu filho, Evilásio Jr., que nunca mostrou ter tino para os negócios e acabou descambando para se tornar um herdeiro profissional, mas as esperanças do sr. Evilásio estavam em seu neto, Afonso, que tinha o mesmo empreendorismo do bisavô, mas com a visão administrativa do avô e uma coragem que todos os jovens tem. Nem precisamos dizer que a muito Afonso, ao completar 18 anos, abandonou a convivência com o pai e foi morar com o avô e desde então vinha sendo treinado para herdar a administração da empresa da família.

Essa administração atualmente se dava da seguinte forma: Evilásio, mesmo com mais de 70 anos, era o presidente do conselho de administração, e devido ao caráter familiar da empresa também exercia o cargo de CEO. Abaixo dele estava, Carlos Eugênio, que era um executivo de carreira, já exercendo a liderança em diversas outras empresas e tinha sido contratado exatamente para a função de Executivo Chefe de Operações, cargo logo abaixo o de Evilásio. E logo abaixo diversos outros Chefes Executivos. E toda essa estrutura que sustentava, com grandes lucros, a cadeia de lojas Minha Casa, a líder na venda de móveis baratos no Brasil.

E foi diante desse quadro que uma mudança mais que inesperada ocorreu.

No fim do ano, antes de um breve recesso para o natal e o ano novo, era sempre feita uma grande reunião do conselho administrativo. Nessa reunião se apuravam os lucros anuais e as diretrizes para o próximo ano eram demonstradas e dezenas de decisões eram tomadas. Era uma reunião longa, que costumava entrar noite a dentro, e, no momento o qual se passa a presente história, já eram mais de oito da noite, e o prédio-sede da empresa encontrava-se praticamente vazio. Lá estavam apenas seguranças e faxineiros, todos funcionários de uma empresa prestadora desses serviços, afinal contratar uma empresa para se prestar esses pequenos serviços, de forma terceirizada, representava uma economia e uma preocupação a menos com um bando de funcionários de baixa renda.

Mas voltemos a falar sobre e reunião, no meio de um tópico importante sobre o aumento das vendas nos estados do nordeste, a porta da sala de reuniões foi aberta de forma abrupta e por ela entraram três funcionários da empresa terceirizada. Com seus macacões azul e marrom, eles rapidamente travaram a porta com um rodo e fitaram a cara de espanto dos membros do conselho administrativo.

No meio dos três funcionários terceirizados estava um senhor, que aparentava mais de 50 anos. Negro, com cabelos apenas nas laterais da cabeça, e estes completamente grisalhos. Ele também tinha uma expressão facial que somente aqueles que muito trabalharam na vida possuem. Os outros dois não são relevantes para este momento da história, basta você saber que eles estavam lá.

O velho negro, de dentro do seu macacão azul e marrom, diante da expressão de espanto de todo o conselho diretor começou a falar numa linguagem bem simples e condizente com sua classe social:

- Boa noite com os senhores.

- Que boa noite nada! Como você interrompe uma reunião como essa?! Isso é um ultraje! – respondeu Evilásio com uma fúria ainda sob controle.

- Descurpa seu Evilásio, mas é que nois temos algo muito importante pra falar com os senhores. Eu estou aqui representando todo mundo da Avis Terceirizados pruquê cada um de nois quer receber uns 5 mil dos senhores todo mês.

Nessa hora todos os membros do conselho diretor fizeram uma cara de espanto maior ainda. E alguns segundos depois as caras de espanto foram substituídas por metade cara de raiva e a outra metade por um riso levemente contido (mas não muito).

Evilásio foi o único que não conteve o riso. E após recobrar a seriedade, perguntou diretamente para o líder do grupo:

- Qual o nome do senhor?

- João. – respondeu o velho negro.

- Seu João – disse Evilásio – mas por que o senhor está nos fazendo esse pedido? – e disse isso ainda tentando conter o riso.

O velho João sorriu de volta, um sorriso meio malicioso, e disse:

- O senhor sabe, a gente ganha só salário mínimo. Todo mundo tem uns meninos pra criar e eu sei que se juntar ceis tudo, 5 mil pra cada um dos 20 da faxina e mais o 5 cinco da segurança não é muita coisa não. Nem pesa no bolso dóceis. Afinal a gente limpa a bagunça que ceis fazem, a gente já viu os extratos do banco doceis. A gente sabe quanto ceis ganham por mês.

Nessa hora a expressão do rosto de Evilásio mudou, assim como a de todo o conselho. A coisa parecia ser séria, não era uma piada de mal gosto. Se recobrando do susto Evilásio se antecipou a todos e perguntou o que todos pensavam:

- E por que nós faríamos isso?

E João calmamente respondeu:

- Olha, pra oceis nós somos todos uns invisíveis. Passamos por oceis e ninguém nos vê. Estamos ali e ninguém nunca nem fala com a gente. Por conta disso ceis esquecem que nós temos ouvidos e olhos. Nós sabemos tudo que oceis fazem e se oceis num quiserem que a gente conte pra todo mundo é bão ceis pagarem.

João parou pra respirar e continuou:

- Nois sabemo que o seu Ailton (um breve aparte, Ailton era uma dos Chefes Executivos. Alto e gordo, sempre muito sério e reservado) vive ligando pra uns garotos de programa. A gente já viu ele até mesmo sair daqui do prédio com uns deles. Isso sem falar nas vezes que ele fica chamando os Office-boy pra ir na casa dele de noite.

E nessa hora Ailton ficou pasmo e quase sem conseguir respirar.

- Nois sabemo também que a Dona Mariana (outra dos Chefes Executivos) é uma outra que gosta duns rapaiz novo. O último que a gente viu com a senhora num devia ter nem 18 anos.

E nessa hora Dona Mariana ficou completamente branca, como se não tivesse mais nenhum sangue em suas veias.

Depois dessas revelações, foi Carlos Eugênio quem começou a falar, ou melhor, gritar, com um ódio ensandecido em sua voz:

- Mas isso é chantagem!!! Vocês vão pra cadeia por conta disso!!!

E João calmamente respondeu:

- Seu Carlos, olha pra nois. Somos pobres, ganhamos um salário mínimo mas não somo burros. Eu já tirei umas dúvida com o povo do jurídico, tipo assim como quem não quer nada e eles num percebero nada tamém. Ceis que tem estudo acham que nós que não temos muito somos idiotas. Mas no fim das contas fica difícil doceis prova que essa conversa realmente aconteceu, afinal dentro dessa sala num tem câmera. Depois, tem outra coisa. Isso que nois tamo fazeno é meio complicado de se dizer exatamente o que é.

- Pelo que eu já falei com o povo do jurídico, isso num é extorsão, pois ninguém aqui ta usando de violência. Também num é ameaça. Isso aqui pode ser o que voceis chama de constrangimento ilegal e a pena pra isso é pequena. Num vale a dor de cabeça que vamos dar proceis, e voceis sabem disso. Voceis sabem que no fim das contas voceis tem muito mais a perder do que nois.

Nessa hora, Evilásio respirou fundo, já tinha percebido a seriedade da situação, já tinha percebido o que estava acontecendo, e começou a pesar os prós e contras de realmente acatar o pedido daquele senhor.

Quase que percebendo o que se passava na cabeça de Evilásio, João continou falando:

- Seu Evilásio, de todos o senhor é o que mais tem a perder. Todo mundo sabe do amor que o senhor tem pelo seu neto e dos pobrema com seu filho. O que seu neto ia achar se soubesse que o senhor manda investigar as namorada que ele arruma na facurdade? Nois já ouvimos conversas suas com detetives, e o senhor mesmo manda ele continua um namoro ou acaba por causa do que o detetive te fala. Fico pensando como o senhor se sentiria se seu neto nunca mais falasse com o senhor.

E com esta fala direta, João conseguiu tirar as últimas dúvidas que existiam no coração de Evilásio. Não havia outro caminho, os riscos envolvidos eram grande demais, e Evilásio sabia que seu neto jamais o perdoaria, mesmo que lhe explicasse que foi pro seu próprio bem. Nessa hora, o presidente da empresa, esgotado, jogou-se na cadeira e disse:

- Tudo bem, concordamos com a sua proposta.

E nessa hora vários outros diretores da empresa se levantaram, quase que em fúria. O mais indignado deles foi Carlos, que esbravejou:

- Como você pode compactuar com isso!! Estamos sendo chantageados e a chantagem vai ser aceita.

- Cale-se Carlos – emendou Evilásio –todo temos podres aqui. Não são crimes, mas são coisas que podem arruinar nossa reputação, que podem acabar com nossas famílias e com o respeito que arduamente conquistamos. O melhor mesmo é pagar...

No fundo Carlos sabia que Evilásio tinha razão, e por fim, também se jogou em sua cadeira. Sem dizer nenhuma palavra, todos sabiam que ele concordava em pagar o que lhes era exigido.

Com a condescendência dos mais importantes membros da diretoria, os demais diretores nada puderam fazer. Somente dinheiro poderia calar a boca daquelas pessoas, que sabiam os segredos mais profundos dos mais importantes membros da empresa.

Todos ali se perguntavam por que não foram mais cautelosos. Mas quem iria se importar com simples faxineiros? E por não se importarem, todos ali iriam pagar. Somente dinheiro pode fazer com que imundices morais continuem enterradas, longe dos olhos julgadores das demais pessoas. No fim, todos sabiam que todos tinham segredos, todo ser humano tem segredos imorais que se pudesse, pagaria (e muito) para que estes jamais fossem revelados.

E assim, o pagamento começou a ser feito.

O tempo passou. Evilásio continuava a vigiar o neto, os demais membros da diretoria continuavam a praticar seus atos sórdidos e a manter seus segredos sujos. A única grande mudança foi na vida de um grupo de pessoas pobres, que passaram a poder viver mais dignamente. Nenhum segredo jamais foi revelado e ninguém nunca mais falou sobre aquela conversa na sala da diretoria, mas todos se reuniam para pegar a sua parte quando a mala com dinheiro vivo era colocada na sala da limpeza.

E assim, a vida de um grupo de pessoas pobres mudou para melhor.