Nota do Autor: O presente texto é continuação do conto Sangue Negro
Para o
restante do país chega a soar estranha uma afirmação como essa, mas um dos
maiores eventos de samba do Brasil é realizado em Manaus. Anualmente
o “Samba Manaus” no sambódromo da cidade atrai uma multidão para curtir um
samba, se divertir e dançar; por óbvio o clima de namoro entre os presente é
forte. Dificilmente um homem consegue sair da festa sem conseguir beijar pelo
menos uma bela mulher. E justamente por esse motivo que aquela era a
oportunidade perfeita para conseguir mais uma vítima.
Tudo bem,
“vítima” era uma palavra excessivamente forte, afinal de contas ele não fazia
nada demais. Conseguir sexo, consensual diga-se de passagem, dar um nome falso,
um número de telefone mais falso ainda, e depois sumir, ainda não era
considerado crime, apesar de ser uma conduta reprovável... para algumas pessoas,
é claro.
Aquela noite,
indo para a festa, ele tinha se arrumado para chamar atenção da mulherada. Era
alto, ombros largos e um corpo que parecia ter sido construído a base de muita
academia. Não era excessivamente forte, mas na medida. Por onde andava as
mulheres paravam e olhavam para ele. Estava vestindo uma bermuda de alfaiataria
comprida até pouco abaixo dos joelhos e uma camisa com gola em “V” de cor clara
que, por ser justa, salientava ainda mais a beleza do seu corpo. Além disso,
usava também um belo chapéu de abas curtas, branco com listras pretas, e que
compunha muito bem o visual.
Quando chegou
ao evento, o lugar estava lotado. Milhares de mulheres, lindas, praticamente
desfilavam pelo lugar, dançando, sorrindo e bebendo, e todas elas eram alvos em potencial. Ele com
toda certeza sairia dali acompanhado por alguém, e alguém linda, afinal de
contas seus padrões eram altos.
E
foi num momento como esse, andando meio que sem rumo, observando a beleza das mulheres
que ali estavam que viu a escolhida daquela noite. Ela deveria ter por volta de
1,75 de altura, tinha a pele escura e os cabelos lisos e negros, lábios carnudos
e olhos também negros e profundos. Algo nela revela que seus antepassados eram
negros e índios, numa combinação de genes que não se poderia dizer qual
predominavam. Usava um vestido branco com detalhes em vermelho, colado ao corpo
escultural. Ela estava dançando sozinha no meio da multidão e a luz do local
parecia iluminar apenas a ela, fazendo com que ela fosse o objeto de desejo de
todos os homens e a inveja de todas as mulheres (se bem que algumas das
mulheres ali presentes desejavam seu corpo e alguns dos homens lhe tinham
inveja). Era uma mulher espetacular, que chamava atenção mesmo não querendo
fazer isso. Era uma gostosona, uma delícia, que conseguia ser ao mesmo tempo
bonita, sensual e voluptuosa.
Ele
foi em direção a ela e entrou em seu campo de visão. Quando seus olhares se
cruzaram, ele deu um sorriso e ela sorriu de volta, e esse era o sinal de que
ele precisava. Se aproximou e começaram a dançar. Eles nunca tinham estado
juntos antes, mas dançavam como se já fizessem isso a anos. Dançando, eles
transmitiam um tremendo desejo e sem mal trocarem um palavra estavam se beijando.
Os beijos eram cada vez mais intensos, parecendo que iriam fazer sexo ali
mesmo, as mãos percorriam os corpos um do outro demonstrando desejos que em
breve seriam saciados.
Saíram
dali e foram em direção a zona portuária do Rio Amazonas por exigência dele.
Pegaram um taxi e praticamente fizeram um show particular para o taxista.
Desceram, ele pagou a corrida. Continuaram se beijando enlouquecidamente, se
agarrando, deixando o desejo transparecer para quem quisesse ver. Num momento ele a agarrou pelos ombros e
olhou no fundo de seus olhos, e foi nessa hora que um forte e bem colocado
golpe acertou sua jugular, interrompendo o fluxo de sangue e o levando ao
desmaio em poucos segundos. Sua visão ficou turva e foi escurecendo, ele foi
caindo no chão, e antes de apagar completamente pode ver um sorriso de vitória
no rosto daquela bela mulher.
O
lugar era uma casa de madeira que parecia ser longe da cidade, afinal o único
barulho que se ouvia era o correr das águas do Amazonas. Ainda era noite, mas
não faltava muito tempo para o amanhecer, e por isso estava ainda muito escuro e
o fato de estarem longe da cidade deixava o local mais escuro ainda. Ele fora
amarrado numa cadeira no meio do único cômodo da casa e estava desmaiado. Na
outra ponta, estava ela, não mais usando o vestido e sim uma calça preta e uma
camisa tipo pólo feminina, também preta. Na camisa chamava a atenção uma imagem
sobre o peito, um arco horizontal com três estrelas bordadas em dourado. Ela estava
mexendo numa mesa, a qual continha um grande aquário cheio de água do rio, mas
sem nenhuma criatura viva, além de algumas facas, armas de fogo e um telefone
via satélite.
Ela
se espreguiçou, como se fosse iniciar um trabalho simples e monótono, estralou
os dedos e depois agarrou uma das facas que estava sobre a mesa. Aproveitou que
sua vítima ainda estava apagada, amarrado na cadeira, e resolveu conseguir
algumas informações a mais. Tirou o chapéu do homem e confirmou a sua certeza,
vendo um orifício no topo da cabeça dele, o qual se mexia levemente e de forma
ritmada. Não havia dúvidas de que aquele homem respirava por aquele orifício.
Nisso olhou fixamente para o chapéu dele que ainda estava em sua mão esquerda.
Levantou o chapéu até a altura de seu rosto, apontou a faca que estava em sua
mão direita para o chapéu e disse numa voz firme e direta, com um leve sotaque
do nordeste:
- Me conte a história dele e
talvez eu te deixe ir embora. Quero saber algumas respostas.
Nisso
o chapéu aos poucos foi se transformando numa arraia de água doce. Ela mais do
que depressa jogou a arraia no grande aquário que estava sobre a mesa. A água
entrou pela boca da arraia e saiu pelas guelras, parecia que a criatura voltava
a respirar. Após algumas respiradas, a arraia projetou parte do corpo para for
do tanque e disse:
- Finalmente aconteceu... eu
sabia que mais dia ou menos dia as merdas que ele fez acabariam por colocar a
gente em encrenca. – E nisso voltou-se para dentro do tanque novamente para
continuar a respirar.
Então
ela se aproximou do aquário, abaixou-se quase colando seu rosto no vidro, e
numa voz mais autoritária ainda disse:
- Eu não quero saber o que ele
fez. Tudo que ele fez eu sei, mas o único motivo dele ainda estar vivo, e você
também, é que eu não sei por que ele faz isso. Eu quero uma resposta e uma
resposta agora.
Bolhas
saíram do aquário, quase como um suspiro da arraia, que então, projetou-se
novamente para fora do aquário e começou a falar:
- Bem, você já deve saber que ele
não é humano. E já deve saber também que ele é um boto. Não um boto qualquer,
mas um boto que pode se transformar em humano nas noites de festa e procurar se
acasalar com mulheres humanas. As lendas são reais, e ele deve ter uma
quantidade razoável de filhos espalhados por aí que jamais saberão quem é o
pai.
Nitidamente
sem paciência, a mulher retrucou:
- Você só está me dizendo coisas
que eu já sei. Me conte logo o que eu quero saber. Não tô aqui pra perder meu
tempo descobrindo que certas lendas são reais, disso eu sei a muito tempo. Não
é por ele ser boto que ele está aqui, ele está aqui pelo que fez com aquelas
meninas, e é isso que eu quero saber.
Mais
uma vez a arraia tinha voltado para dentro do aquário para respirar. A arraia
abriu a boca e deixou entrar uma quantidade de água maior que o normal, e então
projetou seu corpo para fora do aquário novamente e disse:
- Tudo bem. Não vou mais enrolar.
Ele é diferente dos demais botos. Como reza a lenda, uma arraia sempre
acompanha o boto para ser o seu chapéu e já fazem mais de 50 anos que eu
acompanho esse aí. No começo era divertido, eram tempos mais simples, com
pessoas mais inocentes, íamos as festas, ele dançava, arrumava uma mulher e
satisfazia suas necessidades. Eu nunca senti atração por fêmeas humanas, mas
acabei me acostumando a ele, antes eu era um simples animal nadando pelo rio...
Junto dele eu passava a ter consciência, pensar, passava a ter essa dádiva que é
ser consciente sobre mim e sobre o mundo.
A
bela mulher parecia cada vez mais sem paciência. Respirava fundo, quase bufando
de raiva. A arraia não se mostrou insensível a isso, e com medo, continuou:
- Depois de algumas andanças ele
simplesmente resolveu que não voltaria mais para o rio. Ao invés de esperar as
festas acontecerem ele iria ir atrás das festas, acho que foi nessa época que
ele se viciou em sexo, mas não sei ao certo. Com o passar dos anos ele pôde
perceber que envelhecia de forma diferente, algumas vezes ele passava muito
tempo sem demonstrar nenhum sinal de envelhecimento, outras vezes ele parecia
envelhecer anos numa única semana, e o mesmo acontecia conosco. Demorou um
pouco, mas percebemos que todas as vezes que ele fazia sexo com uma virgem ele
não envelhecia, porém quando a garota já havia sido tocada por outros homens
ele parecia envelhecer mais rápido. Durante anos foi fácil nos mantermos
jovens, sempre haviam garotas jovens por aqui. Não que ele dispensasse as
outras, para ele sempre era bom fazer sexo, mas pelo menos uma vez por semana a
garota deveria ser virgem se não, nós envelhecíamos. Só que os tempos mudaram,
veio esse revolução sexual e as mulheres pararam de se importar em estarem
imaculadas para os futuros maridos. Ficava cada vez mais difícil encontrar uma
mulher virgem e passamos a envelhecer mais rapidamente. Num ato de desespero
para se manter sempre jovem, ele teve uma idéia. Resolveu procurar mulheres que
ele sabia que com certeza ainda mantinham sua virgindade. E assim ele passou a
procurar mulheres cada vez mais novas, muitas vezes meninas. E os anos se
passaram e as meninas foram ficando cada vez mais jovens, até que ele começou a
usar a força para ter o que queria. Já a alguns anos que ele usa da violência
contra meninas, muitas com menos de 10 anos, tudo isso para se manter jovem e
poder continuar fazendo sexo com as mulheres da região. A décadas que ele não
precisa assumir a forma do boto e tudo isso por conta da virgindade que ele
toma dessas meninas.
Um
súbito ódio tomou conta daquela mulher. Ela precisou se controlar para poder
falar. Aquele boto era um monstro, violentando meninas, tirando sua inocência,
apenas para continuar sempre jovem e sair por aí engravidando outras mulheres
mais velhas que caiam na sua lábia. Fizeram bem em enviá-la para caçar essa
criatura, pelo menos as meninas da região poderiam não ser mais incomodadas por
ele. Porém algo mais a incomodava, algo que parecia ter passado despercebido...
E então lembrou-se e disse para a arraia:
- Você sempre fala em “nós”. Há
mais alguém além de você e o boto?
Nisso,
a mulher foi agarrada por trás e sentiu um aço frio tocar sua garganta. O boto
havia cortado as cordas que o prendiam e agora estava com a lâmina de um punhal
apontado para a garganta dela pronto para cortá-la. O boto disse rindo de
prazer:
- Um boto sempre anda com uma
arraia que usa como chapéu e com um poraquê* que transforma em punhal e foi com
ele que eu cortei as cordas e me soltei. Agora quem vai te matar sou eu, mas
antes vamos nos divertir um pouco, estou te desejando desde a hora na festa e
ainda não me satisfiz com você. E aquelas meninas, ora, todas gostam do boto, garanto
que elas se divertiram, todas as centenas que eu tirei a virgindade nos últimos
anos. Elas deveriam se sentir honradas, o boto não faz sexo com qualquer uma.
Após
essas palavras o boto gargalhou. As gargalhadas cresciam cada vez mais, assim
como o ódio dentro daquela mulher. Ela respirou fundo e pisou com força no pé
do boto, e num movimento rápido agarrou o braço que segurava o punhal e
afastou-o de sua garganta. Com mais espaço para agir, virou-se de acertou uma
cotevelada na garganta do boto, depois torceu seu braço e tomou-lhe a faca,
jogando a arma o mais longe que podia. Afastou-se um pouco, apenas a distância
para acertar um chute forte no estômago daquela criatura. O boto caiu no chão
gritando de dor, e logo em seguida a mulher montou em cima dele, despejando
dezenas de socos em seu rosto, até que ele parasse de se mexer.
O
boto ainda respirava apesar do rosto encharcado de sangue, estava semi
consciente. Ela se levantou, enfiou dois dedos no respiradouro no alto da
cabeça e ergueu o boto, que voltou a consciência plena e gritou
desesperadamente. Levou-o de volta a cadeira da qual ele havia se soltado, e no
meio do caminho pegou outro pedaço de corda para amarrá-lo.
Amarrou-o
ainda mais forte que na primeira vez e dessa vez revistou-o completamente atrás
de outros objetos que pudessem ser utilizados para que ele se soltasse. O sol
nascia ao fundo, sobre o rio. Ela respirou, se limpou um pouco da sujeira do
chão, se aproximou da criatura que ainda tinha forma humana, olhou no fundo dos
olhos dele e disse:
- Olha, não gosto de falar sobre
mim. Mandacaru sempre conta sua história de vida para quem ele vai matar, mas
eu detesto fazer isso, acho completamente ridículo, irrelevante desnecessário.
O problema é que de alguma forma ele se diverte fazendo isso e eu nunca entendi
por que. Eu prefiro ser mais direta, fazer o serviço logo e depois ir embora.
Só que no seu caso eu vou abrir uma exceção e assim você vai saber o porquê de eu
te fazer sofrer antes de te matar.
Ela
se afastou um pouco. Olhou para o lado e viu que a faca voltou a ser o poraquê,
que agonizava num canto da cabana por não estar dentro da água. Ela sorriu com
a agonia do peixe e sua morte lenta, então começou sua história:
- O dia ao certo em que nasci eu
não sei, mas na minha antiga certidão de batismo dizia que foi no dia 17 de
dezembro de 1921, perto do natal, numa casa simples em Imperatriz, Maranhão.
Provável que eu tivesse nascido antes, mas isso não faz mais muita diferença.
Com o tempo a época que você nasceu deixa de ser tão importante, ainda mais
quando não mais se pode morrer. Minha mãe era descendente de índios e meu pai
negro, filho de ex escravos. Acabei recebendo um nome por sugestão da minha
mãe, o padre não gostou muito mas acabou aceitando que meu nome fosse Iaciara
da Silva. Simples e direto, como eu costumo ser.
- A minha vida foi dura como a de
qualquer pessoa pobre no Brasil. Meu pai trabalhava carregando trens na
ferrovia da região. Sabe, Imperatriz sempre foi um entroncamento comercial do
Maranhão, muita coisa passava por lá: madeira e produtos da terra, além da
produção de várias fazendas de cidades próximas. A vida era dura com meu pai
trabalhando de sol a sol e minha mãe costurando roupas, mas eu dei sorte e cresci
sem ter passado muita fome na vida. À medida que fui crescendo passei a chamar
a atenção dos homens. Na época eu não entendia porque, era muito inocente...
Mas a inocência é feita para ser perdida.
- Eu devia ter por volta de 13
anos de idade, pouco mais do que uma criança, mas já uma moça, como diziam por
lá. Ele era mais velho que eu, filho de um fazendeiro de uma região próxima,
nem mesmo morava na mesma cidade que eu... Simplesmente me viu na rua, logo
após ter entregado o almoço para o meu pai na estação de trem... Ele me agarrou
pelo braço e me levou pro meio do mato... E foi lá que ele me violentou. Eu não
sabia direito que estava acontecendo, apenas sentia vergonha, e sentia muita,
muita dor... Mas tinha algo que eu sentia mais do que tudo isso: era ódio.
Nunca odiei tanto uma pessoa como aquele homem. Ele estava lá em cima de mim, e
eu não podia fazer nada, a não ser chorar e odiá-lo com todas as minhas forças.
Depois de ter me usado da forma como quis, ele se levantou, se vestiu e jogou
algumas notas de dinheiro em cima de mim. Fiquei vagando pela cidade, com minhas
roupas rasgadas e completamente humilhada. Achava que a culpa tinha sido minha,
que eu deveria ter dito “não” com mais força. Rezei pedindo para que Deus me
explicasse porque aquilo tinha acontecido comigo, mas minhas preces não foram
atendidas. Somente cheguei em casa a noite, ainda coberta com a vergonha do que
tinha acontecido. Meus pais me esperavam
e ao olharem para mim já sabiam o que tinha acontecido. Meu pai, com toda a
simplicidade que lhe era característica me perguntou o que tinha acontecido,
apenas para confirmar sua suspeita, e eu lhe contei. Vi seus olhos se encherem
de lágrimas, junto com os olhos de minha mãe, quando lhes disse quem havia
feito aquilo comigo e uma tristeza sobrenatural parecia ter se abatido sobre
eles. Mas as coisas ainda poderiam ficar muito piores. Nesse momento vi meu pai
se levantar, e a tristeza havia se transformado em fúria. Antes mesmo de
a primeira palavra sair de sua boca eu sabia que ele iria me acusar de ser
culpada por tudo, e foi exatamente isso que aconteceu. Fui xingada de palavras
tão baixas que ainda ecoam na minha mente em noites de insônia. Meu pai me bateu
e me arrastou pelos cabelos por toda a cidade, me chamando de “puta”,
“vagabunda” e coisas piores. Naquela hora achei que meu destino ia ser passar o
resto dos meus dias num bordel vagabundo de beira de estrada, tendo que servir
a homens mais nojentos do que aquele que havia me violentado.
Iaciara
parou para respirar um pouco. Contar essas velhas lembranças ainda doía. Ainda
podia sentir as grossas mãos de seu pai lhe batendo por algo que ela não tinha
culpa nenhuma. Porém, também pensavam na vingança perpetrada anos depois contra
o homem que a havia violentado, e isso sempre lhe dava um sorriso e força para
continuar:
- Mas algo inesperado aconteceu
naquele dia. Um homem que passava pela cidade, um árabe caixeiro viajante viu meu
pai me espancando no meio da rua e perguntou o que acontecia. Meu pai contou
como eu havia me entregado para o filho de um rico fazendeiro, como a culpa era
minha, como eu havia desgraçado sua honra. E nessa hora eu vi um lampejo de
piedade no rosto do árabe. Ele sorriu e disse ao meu pai que ficaria comigo e
me levaria embora da cidade. Sem uma única muda de roupa, subi no carroção dele
e puxada por dois jumentos, sai da única cidade que conhecia e da única família
que tinha.
Já
era dia e ele continuava sua história. O calor impregnava a cabana e o sangue
no rosto do boto havia secado. Ele ainda estava consciente e ouvia o relato. E
nos olhos dele o orgulho havia sido substituído por desespero. O boto
finalmente descobriu que não havia forma de sair daquele lugar vivo. Iaciara
continuou:
- Sabe, o árabe era gordo. Gordo
demais para uma pessoa que trabalhava andando de cidade em cidade. O nome dele não
importa muito, da mesma forma que o nome do coronel e do filho dele não
importam agora... Mas quando o árabe me levou, era óbvio que não apenas a
piedade o havia incentivado. Na primeira noite que passei com ele na estrada,
eu senti suas mãos por baixo de meu vestido, me acariciando. O toque dele era
delicado, gentil, suave, mas depois do que havia acontecido aquilo me
assustava. Eu ainda estava com medo, atormentada com as lembranças do que havia
acontecido naquele dia e me retrai. Ele, gentil como sempre, me disse que não
deveria ter medo. Ele me disse que aquilo poderia ser bom, desde que eu me
acalmasse. Não sei se era a natureza dele ou a minha situação, mas naquela
noite ele apenas dormiu junto a mim, e eu senti o calor de seu corpo junto ao
meu e me senti reconfortada por conta disso. Alguém finalmente estava me
protegendo. Aos poucos nossa intimidade foi aumentando, ele me fazia leves
carícias durante a noite e eu fui começando a me habituar aquilo e a gostar do
seu toque. O que me causava medo passou a me causar um certo prazer. Não
demorou muito para que eu acabasse me entregando a ele, dessa vez com uma
pequena noção de consentimento, e pela primeira vez pude sentir prazer com um
homem. No dia seguinte, quando acordei, ele havia separado um vestido, dentro
os melhores que ele vendia, e o deu para mim. Era um vestido simples, mas o
melhor que já tinha usado na vida. Nossa relação continuou dessa forma, sempre
que ele fazia sexo comigo, no dia seguinte eu acaba por receber um presente.
Sexo passou a ser uma espécie de moeda de troca, e não demorou muito para que
eu soubesse que poderia exigir dele o que eu quisesse em troca de uma noite de
carícias. Eu não amava aquele árabe velho, mas gostava muito dele. Ele foi bom
pra mim e me mostrou que sexo poderia ser prazeroso.
- Passamos alguns anos juntos,
rodando por cidades do interior do nordeste, vendo pequenos utensílios que as
pessoas usavam. Até que, andando pelo interior de Pernambuco eu o vi. Sua
imagem era imponente, um homem forte, de pele bronzeada, montado num cavalo e
usando um gibão de couro. Os anéis em seus dedos brilhavam com o luz do sol e o
sorriso que ele me deu quando me viu trouxe a mim desejos que nunca tive com o
árabe. Eu olhava o cangaceiro pelas ruas, admirando-o, desejando-o. E o velho
parecia ter percebido isso no meu olhar. Ao invés de me bater ou me expulsar,
ele percebeu que nosso tempo juntos tinha acabado. O árabe era um homem integro
e após me dar um longo abraço, me deixou partir com o cangaceiro.
As
lembranças de Iaciara ficavam menos amargas nesse pedaço da história e um
esboço de sorriso parecia surgir de seus lábios.
- Montei com ele em seu cavalo e
fomos embora dali. Ele fazia parte do bando de Lampião, não era um dos membros
importantes mas ainda assim estava no bando e era um homem bonito. Naquela
época eu já tinha mais formas de mulher e a menina medrosa havia ficado para
trás. Aquele homem estava comigo, sabia o que queria e ao lado dele parecia que
nada de mal iria me acontecer. O problema é que com a mesma facilidade com que
ele me conquistou, parecia que havia enjoado de mim. Tive com ele momentos de
felicidade muito intensa, uma época de doces lembranças, mas ele passou a não
mais me procurar e a ir atrás de outras mulheres assim que estava perto o
suficiente de uma cidade. Isso me magoou, mas serviu para me fazer perceber que
ele não era o único homem que me olhava com desejo. Outros homens do bando me desejavam
e isso mostrou ter sua utilidade. Os homens que passavam a me desejar tentavam
me agradar de todas as formas, um presente, um perfume roubado, um vestido
novo. Sempre que iam para algum lugar, sempre voltavam com algo para mim e tudo
isso em troca de um pequeno sorriso ou da simples possibilidade de eu insinuar
que poderia querer algum deles comigo a noite. Óbvio que estive com alguns, mas
nenhum deles me tomou a força, foram apenas porque eu queria tanto quanto eles.
Eu percebi que estava no controle e que poderia fazer com eles o que eu
quisesse. E com um deles era melhor do que com qualquer outro. Ele tinha uma
brutalidade aparente, mas poucos homens foram tão gentis comigo enquanto
estávamos a sós. Não era amor, era só desejo. Um desejo forte, que ambos
adorávamos satisfazer. Ele me colocou um
apelido ridículo, “Sininho” apenas por conta dos gritos de prazer que costumava
dar. Mais tarde ele descobriu um personagem infantil com esse mesmo nome, e
para ele, apenas aumentou a graça desse nome. Nunca gostei do apelido, mas certas
marcas somos obrigados a carregar por toda a vida, e esse nome ridículo foi uma
dessas marcas.
- Numa noite estava acompanhando ele, o bando o
chamava de Mandacaru, e com a gente estava um rapaz novo que havia acabado de
entrar para o bando, chamado de Bode. Íamos para Angicos, encontrar com
Lampião. Deixamos o Bode arrumando o fogo e nos afastamos para realizarmos
nossos próprios desejos e quando voltamos foi a hora que aconteceu. Alguma
coisa riscou o céu, uma estrela cadente ao algo assim, nos jogamos no chão e o
pó que caia daquela coisa nos cobriu. Na hora não percebemos nada de errado,
mas uns dias depois, quando já estávamos com Lampião em Angicos eu descobri o
que havia acontecido conosco. O bando foi massacrado, eu mesmo tomei alguns
tiros e apaguei achando que ia morrer, apenas para acordar um tempo depois como
se apenas tivesse caído no sono. Tentaram nos matar outras vezes, mas era
sempre a mesma coisa, acordando como se nada tivesse acontecido. Fomos levados
para o Rio da Janeiro e nessa hora o presidente da época, Vargas, teve sua
grande idéia. Na época o Brasil ainda era bastante despovoado, lugar fácil para
certas criaturas extrapolarem. Eu mesmo, já havia ouvido histórias sobre
monstros que só conhecida da literatura de cordel. Esses monstros eram reais,e
descobri que haviam abusos sendo cometidos. Famílias inteiras mortas por um
lobisomem, pessoas perdidas na florestas que morriam de fome unicamente por
conta de caprichos de curupiras. Meu trabalho, o de Bode e de Mandacaru deveria
ir atrás daquelas criaturas que apareciam demais, que chamavam atenção demais
sobre si ou que incomodavam as pessoas erradas. Também fazíamos alguns serviços
mais sujos, eliminando cidadãos indesejados. Criaram uma divisão pra gente
dentro do órgão de Inteligência da época. Sabe, esse órgão já mudou de nome
tantas vezes que eu nem ligo mais, apenas faço meu trabalho. Fui treinada pelos
melhores, eu e meus companheiros, por assim dizer, e sinceramente, sou ótima no
que eu faço pelo que você pôde perceber. O problema é que as vezes eu tenho uma
tendência a ser cruel demais. Sabe, por ter sido violentada eu tenho um ódio
especial por pessoas que fazem esse tipo de coisa, ainda mais quando o filho da
puta faz isso com crianças.
Nesse
momento um brilho cruel brotou nos olhos de Iaciara, e ela parecia estar
voltando a se divertir com aquilo. Pegou uma das facas sobre a mesa e rasgou o
rosto do boto de forma humana. O rasgo foi feito da testa ao queixo da
criatura, que gritou de dor ao ter a metade direita do rosto retalhada. O
sangue escorria e manchava a roupa suja do Boto.
Iaciara
se afastou, adorando cada momento, vendo a expressão de dor no rosto dele.
Ainda com a faca nas mãos, voltou em direção a criatura e rasgou sua calça.
Pegou aquele órgão sexual que havia violado tantas meninas inocentes, cravou a
faca na altura da base e veio rasgando por todo o corpo em direção ao prepúcio,
dividindo o pênis em duas metades.
O
boto gritava, chorava e se contorcia de dor, e ela apenas olhava, vendo o
sofrimento e a poça se sangue que se formava ao redor da cadeira na qual ele
estava preso. A arraia, ainda no tanque, apenas via aquilo, estava paralisada
em silêncio e pânico, já o poraquê estava morto, sufocado pela falta de água.
O
boto implorou por sua vida, dizendo que nunca mais faria nada com nenhuma outra
criança. Implorou dizendo que voltaria para o rio e jamais tomaria a forma
humana novamente, mas isso não era suficiente. Ele havia estuprado crianças em
troca de longevidade e precisava pagar por isso. Centenas de crianças haviam
sido abusadas e ele iria sofrer por cada uma delas.
Ao
fim de toda uma manhã de gritos, dor e sangue, Iaciara finalmente se deu por
satisfeita. Enfiou a faca fundo no respiradouro no topo da cabeça humana do
boto, torceu, e esperou os últimos espasmos antes da morte.
Soltou
o corpo da cadeira, que caiu inerte no chão. Aos poucos o corpo do homem voltou
a ser um boto rosa do Amazonas, jazendo morto no chão da cabana.
Nesse
momento Iaciara, vendo o animal morto no chão, soltou um riso e repetiu para si
mesmo:
- Merda, espero não ter problemas
com o IBAMA. Acabei de matar uma espécie em extinção. Acho que
cometi um crime ambiental. Mas isso é um problema para o General resolver.
E
saiu em direção a porta da cabana, não sem antes quebrar o aquário de vidro
onde a arraia estava, deixando-a sufocando até a morte no chão.
* Poraquê é um peixe eletrônico
da região do Amazonas. Procure no Google.
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