Crime Ambiental

segunda-feira, 24 de novembro de 2014 | Published in | 0 comentários


Nota do Autor: O presente texto é continuação do conto Sangue Negro

Para o restante do país chega a soar estranha uma afirmação como essa, mas um dos maiores eventos de samba do Brasil é realizado em Manaus. Anualmente o “Samba Manaus” no sambódromo da cidade atrai uma multidão para curtir um samba, se divertir e dançar; por óbvio o clima de namoro entre os presente é forte. Dificilmente um homem consegue sair da festa sem conseguir beijar pelo menos uma bela mulher. E justamente por esse motivo que aquela era a oportunidade perfeita para conseguir mais uma vítima.
Tudo bem, “vítima” era uma palavra excessivamente forte, afinal de contas ele não fazia nada demais. Conseguir sexo, consensual diga-se de passagem, dar um nome falso, um número de telefone mais falso ainda, e depois sumir, ainda não era considerado crime, apesar de ser uma conduta reprovável... para algumas pessoas, é claro.
Aquela noite, indo para a festa, ele tinha se arrumado para chamar atenção da mulherada. Era alto, ombros largos e um corpo que parecia ter sido construído a base de muita academia. Não era excessivamente forte, mas na medida. Por onde andava as mulheres paravam e olhavam para ele. Estava vestindo uma bermuda de alfaiataria comprida até pouco abaixo dos joelhos e uma camisa com gola em “V” de cor clara que, por ser justa, salientava ainda mais a beleza do seu corpo. Além disso, usava também um belo chapéu de abas curtas, branco com listras pretas, e que compunha muito bem o visual.
Quando chegou ao evento, o lugar estava lotado. Milhares de mulheres, lindas, praticamente desfilavam pelo lugar, dançando, sorrindo e bebendo, e todas elas eram alvos em potencial. Ele com toda certeza sairia dali acompanhado por alguém, e alguém linda, afinal de contas seus padrões eram altos.
            E foi num momento como esse, andando meio que sem rumo, observando a beleza das mulheres que ali estavam que viu a escolhida daquela noite. Ela deveria ter por volta de 1,75 de altura, tinha a pele escura e os cabelos lisos e negros, lábios carnudos e olhos também negros e profundos. Algo nela revela que seus antepassados eram negros e índios, numa combinação de genes que não se poderia dizer qual predominavam. Usava um vestido branco com detalhes em vermelho, colado ao corpo escultural. Ela estava dançando sozinha no meio da multidão e a luz do local parecia iluminar apenas a ela, fazendo com que ela fosse o objeto de desejo de todos os homens e a inveja de todas as mulheres (se bem que algumas das mulheres ali presentes desejavam seu corpo e alguns dos homens lhe tinham inveja). Era uma mulher espetacular, que chamava atenção mesmo não querendo fazer isso. Era uma gostosona, uma delícia, que conseguia ser ao mesmo tempo bonita, sensual e voluptuosa.
            Ele foi em direção a ela e entrou em seu campo de visão. Quando seus olhares se cruzaram, ele deu um sorriso e ela sorriu de volta, e esse era o sinal de que ele precisava. Se aproximou e começaram a dançar. Eles nunca tinham estado juntos antes, mas dançavam como se já fizessem isso a anos. Dançando, eles transmitiam um tremendo desejo e sem mal trocarem um palavra estavam se beijando. Os beijos eram cada vez mais intensos, parecendo que iriam fazer sexo ali mesmo, as mãos percorriam os corpos um do outro demonstrando desejos que em breve seriam saciados.
            Saíram dali e foram em direção a zona portuária do Rio Amazonas por exigência dele. Pegaram um taxi e praticamente fizeram um show particular para o taxista. Desceram, ele pagou a corrida. Continuaram se beijando enlouquecidamente, se agarrando, deixando o desejo transparecer para quem quisesse ver.  Num momento ele a agarrou pelos ombros e olhou no fundo de seus olhos, e foi nessa hora que um forte e bem colocado golpe acertou sua jugular, interrompendo o fluxo de sangue e o levando ao desmaio em poucos segundos. Sua visão ficou turva e foi escurecendo, ele foi caindo no chão, e antes de apagar completamente pode ver um sorriso de vitória no rosto daquela bela mulher.


            O lugar era uma casa de madeira que parecia ser longe da cidade, afinal o único barulho que se ouvia era o correr das águas do Amazonas. Ainda era noite, mas não faltava muito tempo para o amanhecer, e por isso estava ainda muito escuro e o fato de estarem longe da cidade deixava o local mais escuro ainda. Ele fora amarrado numa cadeira no meio do único cômodo da casa e estava desmaiado. Na outra ponta, estava ela, não mais usando o vestido e sim uma calça preta e uma camisa tipo pólo feminina, também preta. Na camisa chamava a atenção uma imagem sobre o peito, um arco horizontal com três estrelas bordadas em dourado. Ela estava mexendo numa mesa, a qual continha um grande aquário cheio de água do rio, mas sem nenhuma criatura viva, além de algumas facas, armas de fogo e um telefone via satélite.
            Ela se espreguiçou, como se fosse iniciar um trabalho simples e monótono, estralou os dedos e depois agarrou uma das facas que estava sobre a mesa. Aproveitou que sua vítima ainda estava apagada, amarrado na cadeira, e resolveu conseguir algumas informações a mais. Tirou o chapéu do homem e confirmou a sua certeza, vendo um orifício no topo da cabeça dele, o qual se mexia levemente e de forma ritmada. Não havia dúvidas de que aquele homem respirava por aquele orifício. Nisso olhou fixamente para o chapéu dele que ainda estava em sua mão esquerda. Levantou o chapéu até a altura de seu rosto, apontou a faca que estava em sua mão direita para o chapéu e disse numa voz firme e direta, com um leve sotaque do nordeste:
- Me conte a história dele e talvez eu te deixe ir embora. Quero saber algumas respostas.
            Nisso o chapéu aos poucos foi se transformando numa arraia de água doce. Ela mais do que depressa jogou a arraia no grande aquário que estava sobre a mesa. A água entrou pela boca da arraia e saiu pelas guelras, parecia que a criatura voltava a respirar. Após algumas respiradas, a arraia projetou parte do corpo para for do tanque e disse:
- Finalmente aconteceu... eu sabia que mais dia ou menos dia as merdas que ele fez acabariam por colocar a gente em encrenca. – E nisso voltou-se para dentro do tanque novamente para continuar a respirar.
            Então ela se aproximou do aquário, abaixou-se quase colando seu rosto no vidro, e numa voz mais autoritária ainda disse:
- Eu não quero saber o que ele fez. Tudo que ele fez eu sei, mas o único motivo dele ainda estar vivo, e você também, é que eu não sei por que ele faz isso. Eu quero uma resposta e uma resposta agora.
            Bolhas saíram do aquário, quase como um suspiro da arraia, que então, projetou-se novamente para fora do aquário e começou a falar:
- Bem, você já deve saber que ele não é humano. E já deve saber também que ele é um boto. Não um boto qualquer, mas um boto que pode se transformar em humano nas noites de festa e procurar se acasalar com mulheres humanas. As lendas são reais, e ele deve ter uma quantidade razoável de filhos espalhados por aí que jamais saberão quem é o pai.
            Nitidamente sem paciência, a mulher retrucou:
- Você só está me dizendo coisas que eu já sei. Me conte logo o que eu quero saber. Não tô aqui pra perder meu tempo descobrindo que certas lendas são reais, disso eu sei a muito tempo. Não é por ele ser boto que ele está aqui, ele está aqui pelo que fez com aquelas meninas, e é isso que eu quero saber.
            Mais uma vez a arraia tinha voltado para dentro do aquário para respirar. A arraia abriu a boca e deixou entrar uma quantidade de água maior que o normal, e então projetou seu corpo para fora do aquário novamente e disse:
- Tudo bem. Não vou mais enrolar. Ele é diferente dos demais botos. Como reza a lenda, uma arraia sempre acompanha o boto para ser o seu chapéu e já fazem mais de 50 anos que eu acompanho esse aí. No começo era divertido, eram tempos mais simples, com pessoas mais inocentes, íamos as festas, ele dançava, arrumava uma mulher e satisfazia suas necessidades. Eu nunca senti atração por fêmeas humanas, mas acabei me acostumando a ele, antes eu era um simples animal nadando pelo rio... Junto dele eu passava a ter consciência, pensar, passava a ter essa dádiva que é ser consciente sobre mim e sobre o mundo.
            A bela mulher parecia cada vez mais sem paciência. Respirava fundo, quase bufando de raiva. A arraia não se mostrou insensível a isso, e com medo, continuou:
- Depois de algumas andanças ele simplesmente resolveu que não voltaria mais para o rio. Ao invés de esperar as festas acontecerem ele iria ir atrás das festas, acho que foi nessa época que ele se viciou em sexo, mas não sei ao certo. Com o passar dos anos ele pôde perceber que envelhecia de forma diferente, algumas vezes ele passava muito tempo sem demonstrar nenhum sinal de envelhecimento, outras vezes ele parecia envelhecer anos numa única semana, e o mesmo acontecia conosco. Demorou um pouco, mas percebemos que todas as vezes que ele fazia sexo com uma virgem ele não envelhecia, porém quando a garota já havia sido tocada por outros homens ele parecia envelhecer mais rápido. Durante anos foi fácil nos mantermos jovens, sempre haviam garotas jovens por aqui. Não que ele dispensasse as outras, para ele sempre era bom fazer sexo, mas pelo menos uma vez por semana a garota deveria ser virgem se não, nós envelhecíamos. Só que os tempos mudaram, veio esse revolução sexual e as mulheres pararam de se importar em estarem imaculadas para os futuros maridos. Ficava cada vez mais difícil encontrar uma mulher virgem e passamos a envelhecer mais rapidamente. Num ato de desespero para se manter sempre jovem, ele teve uma idéia. Resolveu procurar mulheres que ele sabia que com certeza ainda mantinham sua virgindade. E assim ele passou a procurar mulheres cada vez mais novas, muitas vezes meninas. E os anos se passaram e as meninas foram ficando cada vez mais jovens, até que ele começou a usar a força para ter o que queria. Já a alguns anos que ele usa da violência contra meninas, muitas com menos de 10 anos, tudo isso para se manter jovem e poder continuar fazendo sexo com as mulheres da região. A décadas que ele não precisa assumir a forma do boto e tudo isso por conta da virgindade que ele toma dessas meninas.
            Um súbito ódio tomou conta daquela mulher. Ela precisou se controlar para poder falar. Aquele boto era um monstro, violentando meninas, tirando sua inocência, apenas para continuar sempre jovem e sair por aí engravidando outras mulheres mais velhas que caiam na sua lábia. Fizeram bem em enviá-la para caçar essa criatura, pelo menos as meninas da região poderiam não ser mais incomodadas por ele. Porém algo mais a incomodava, algo que parecia ter passado despercebido... E então lembrou-se e disse para a arraia:
- Você sempre fala em “nós”. Há mais alguém além de você e o boto?
            Nisso, a mulher foi agarrada por trás e sentiu um aço frio tocar sua garganta. O boto havia cortado as cordas que o prendiam e agora estava com a lâmina de um punhal apontado para a garganta dela pronto para cortá-la. O boto disse rindo de prazer:
- Um boto sempre anda com uma arraia que usa como chapéu e com um poraquê* que transforma em punhal e foi com ele que eu cortei as cordas e me soltei. Agora quem vai te matar sou eu, mas antes vamos nos divertir um pouco, estou te desejando desde a hora na festa e ainda não me satisfiz com você. E aquelas meninas, ora, todas gostam do boto, garanto que elas se divertiram, todas as centenas que eu tirei a virgindade nos últimos anos. Elas deveriam se sentir honradas, o boto não faz sexo com qualquer uma.
            Após essas palavras o boto gargalhou. As gargalhadas cresciam cada vez mais, assim como o ódio dentro daquela mulher. Ela respirou fundo e pisou com força no pé do boto, e num movimento rápido agarrou o braço que segurava o punhal e afastou-o de sua garganta. Com mais espaço para agir, virou-se de acertou uma cotevelada na garganta do boto, depois torceu seu braço e tomou-lhe a faca, jogando a arma o mais longe que podia. Afastou-se um pouco, apenas a distância para acertar um chute forte no estômago daquela criatura. O boto caiu no chão gritando de dor, e logo em seguida a mulher montou em cima dele, despejando dezenas de socos em seu rosto, até que ele parasse de se mexer.
            O boto ainda respirava apesar do rosto encharcado de sangue, estava semi consciente. Ela se levantou, enfiou dois dedos no respiradouro no alto da cabeça e ergueu o boto, que voltou a consciência plena e gritou desesperadamente. Levou-o de volta a cadeira da qual ele havia se soltado, e no meio do caminho pegou outro pedaço de corda para amarrá-lo.
            Amarrou-o ainda mais forte que na primeira vez e dessa vez revistou-o completamente atrás de outros objetos que pudessem ser utilizados para que ele se soltasse. O sol nascia ao fundo, sobre o rio. Ela respirou, se limpou um pouco da sujeira do chão, se aproximou da criatura que ainda tinha forma humana, olhou no fundo dos olhos dele e disse:
- Olha, não gosto de falar sobre mim. Mandacaru sempre conta sua história de vida para quem ele vai matar, mas eu detesto fazer isso, acho completamente ridículo, irrelevante desnecessário. O problema é que de alguma forma ele se diverte fazendo isso e eu nunca entendi por que. Eu prefiro ser mais direta, fazer o serviço logo e depois ir embora. Só que no seu caso eu vou abrir uma exceção e assim você vai saber o porquê de eu te fazer sofrer antes de te matar.
            Ela se afastou um pouco. Olhou para o lado e viu que a faca voltou a ser o poraquê, que agonizava num canto da cabana por não estar dentro da água. Ela sorriu com a agonia do peixe e sua morte lenta, então começou sua história:
- O dia ao certo em que nasci eu não sei, mas na minha antiga certidão de batismo dizia que foi no dia 17 de dezembro de 1921, perto do natal, numa casa simples em Imperatriz, Maranhão. Provável que eu tivesse nascido antes, mas isso não faz mais muita diferença. Com o tempo a época que você nasceu deixa de ser tão importante, ainda mais quando não mais se pode morrer. Minha mãe era descendente de índios e meu pai negro, filho de ex escravos. Acabei recebendo um nome por sugestão da minha mãe, o padre não gostou muito mas acabou aceitando que meu nome fosse Iaciara da Silva. Simples e direto, como eu costumo ser.
- A minha vida foi dura como a de qualquer pessoa pobre no Brasil. Meu pai trabalhava carregando trens na ferrovia da região. Sabe, Imperatriz sempre foi um entroncamento comercial do Maranhão, muita coisa passava por lá: madeira e produtos da terra, além da produção de várias fazendas de cidades próximas. A vida era dura com meu pai trabalhando de sol a sol e minha mãe costurando roupas, mas eu dei sorte e cresci sem ter passado muita fome na vida. À medida que fui crescendo passei a chamar a atenção dos homens. Na época eu não entendia porque, era muito inocente... Mas a inocência é feita para ser perdida.
- Eu devia ter por volta de 13 anos de idade, pouco mais do que uma criança, mas já uma moça, como diziam por lá. Ele era mais velho que eu, filho de um fazendeiro de uma região próxima, nem mesmo morava na mesma cidade que eu... Simplesmente me viu na rua, logo após ter entregado o almoço para o meu pai na estação de trem... Ele me agarrou pelo braço e me levou pro meio do mato... E foi lá que ele me violentou. Eu não sabia direito que estava acontecendo, apenas sentia vergonha, e sentia muita, muita dor... Mas tinha algo que eu sentia mais do que tudo isso: era ódio. Nunca odiei tanto uma pessoa como aquele homem. Ele estava lá em cima de mim, e eu não podia fazer nada, a não ser chorar e odiá-lo com todas as minhas forças. Depois de ter me usado da forma como quis, ele se levantou, se vestiu e jogou algumas notas de dinheiro em cima de mim. Fiquei vagando pela cidade, com minhas roupas rasgadas e completamente humilhada. Achava que a culpa tinha sido minha, que eu deveria ter dito “não” com mais força. Rezei pedindo para que Deus me explicasse porque aquilo tinha acontecido comigo, mas minhas preces não foram atendidas. Somente cheguei em casa a noite, ainda coberta com a vergonha do que tinha acontecido.  Meus pais me esperavam e ao olharem para mim já sabiam o que tinha acontecido. Meu pai, com toda a simplicidade que lhe era característica me perguntou o que tinha acontecido, apenas para confirmar sua suspeita, e eu lhe contei. Vi seus olhos se encherem de lágrimas, junto com os olhos de minha mãe, quando lhes disse quem havia feito aquilo comigo e uma tristeza sobrenatural parecia ter se abatido sobre eles. Mas as coisas ainda poderiam ficar muito piores. Nesse momento vi meu pai se levantar, e a tristeza havia se transformado em fúria. Antes mesmo de a primeira palavra sair de sua boca eu sabia que ele iria me acusar de ser culpada por tudo, e foi exatamente isso que aconteceu. Fui xingada de palavras tão baixas que ainda ecoam na minha mente em noites de insônia. Meu pai me bateu e me arrastou pelos cabelos por toda a cidade, me chamando de “puta”, “vagabunda” e coisas piores. Naquela hora achei que meu destino ia ser passar o resto dos meus dias num bordel vagabundo de beira de estrada, tendo que servir a homens mais nojentos do que aquele que havia me violentado.
            Iaciara parou para respirar um pouco. Contar essas velhas lembranças ainda doía. Ainda podia sentir as grossas mãos de seu pai lhe batendo por algo que ela não tinha culpa nenhuma. Porém, também pensavam na vingança perpetrada anos depois contra o homem que a havia violentado, e isso sempre lhe dava um sorriso e força para continuar:
- Mas algo inesperado aconteceu naquele dia. Um homem que passava pela cidade, um árabe caixeiro viajante viu meu pai me espancando no meio da rua e perguntou o que acontecia. Meu pai contou como eu havia me entregado para o filho de um rico fazendeiro, como a culpa era minha, como eu havia desgraçado sua honra. E nessa hora eu vi um lampejo de piedade no rosto do árabe. Ele sorriu e disse ao meu pai que ficaria comigo e me levaria embora da cidade. Sem uma única muda de roupa, subi no carroção dele e puxada por dois jumentos, sai da única cidade que conhecia e da única família que tinha.
            Já era dia e ele continuava sua história. O calor impregnava a cabana e o sangue no rosto do boto havia secado. Ele ainda estava consciente e ouvia o relato. E nos olhos dele o orgulho havia sido substituído por desespero. O boto finalmente descobriu que não havia forma de sair daquele lugar vivo. Iaciara continuou:
- Sabe, o árabe era gordo. Gordo demais para uma pessoa que trabalhava andando de cidade em cidade. O nome dele não importa muito, da mesma forma que o nome do coronel e do filho dele não importam agora... Mas quando o árabe me levou, era óbvio que não apenas a piedade o havia incentivado. Na primeira noite que passei com ele na estrada, eu senti suas mãos por baixo de meu vestido, me acariciando. O toque dele era delicado, gentil, suave, mas depois do que havia acontecido aquilo me assustava. Eu ainda estava com medo, atormentada com as lembranças do que havia acontecido naquele dia e me retrai. Ele, gentil como sempre, me disse que não deveria ter medo. Ele me disse que aquilo poderia ser bom, desde que eu me acalmasse. Não sei se era a natureza dele ou a minha situação, mas naquela noite ele apenas dormiu junto a mim, e eu senti o calor de seu corpo junto ao meu e me senti reconfortada por conta disso. Alguém finalmente estava me protegendo. Aos poucos nossa intimidade foi aumentando, ele me fazia leves carícias durante a noite e eu fui começando a me habituar aquilo e a gostar do seu toque. O que me causava medo passou a me causar um certo prazer. Não demorou muito para que eu acabasse me entregando a ele, dessa vez com uma pequena noção de consentimento, e pela primeira vez pude sentir prazer com um homem. No dia seguinte, quando acordei, ele havia separado um vestido, dentro os melhores que ele vendia, e o deu para mim. Era um vestido simples, mas o melhor que já tinha usado na vida. Nossa relação continuou dessa forma, sempre que ele fazia sexo comigo, no dia seguinte eu acaba por receber um presente. Sexo passou a ser uma espécie de moeda de troca, e não demorou muito para que eu soubesse que poderia exigir dele o que eu quisesse em troca de uma noite de carícias. Eu não amava aquele árabe velho, mas gostava muito dele. Ele foi bom pra mim e me mostrou que sexo poderia ser prazeroso.
- Passamos alguns anos juntos, rodando por cidades do interior do nordeste, vendo pequenos utensílios que as pessoas usavam. Até que, andando pelo interior de Pernambuco eu o vi. Sua imagem era imponente, um homem forte, de pele bronzeada, montado num cavalo e usando um gibão de couro. Os anéis em seus dedos brilhavam com o luz do sol e o sorriso que ele me deu quando me viu trouxe a mim desejos que nunca tive com o árabe. Eu olhava o cangaceiro pelas ruas, admirando-o, desejando-o. E o velho parecia ter percebido isso no meu olhar. Ao invés de me bater ou me expulsar, ele percebeu que nosso tempo juntos tinha acabado. O árabe era um homem integro e após me dar um longo abraço, me deixou partir com o cangaceiro.
            As lembranças de Iaciara ficavam menos amargas nesse pedaço da história e um esboço de sorriso parecia surgir de seus lábios.
- Montei com ele em seu cavalo e fomos embora dali. Ele fazia parte do bando de Lampião, não era um dos membros importantes mas ainda assim estava no bando e era um homem bonito. Naquela época eu já tinha mais formas de mulher e a menina medrosa havia ficado para trás. Aquele homem estava comigo, sabia o que queria e ao lado dele parecia que nada de mal iria me acontecer. O problema é que com a mesma facilidade com que ele me conquistou, parecia que havia enjoado de mim. Tive com ele momentos de felicidade muito intensa, uma época de doces lembranças, mas ele passou a não mais me procurar e a ir atrás de outras mulheres assim que estava perto o suficiente de uma cidade. Isso me magoou, mas serviu para me fazer perceber que ele não era o único homem que me olhava com desejo. Outros homens do bando me desejavam e isso mostrou ter sua utilidade. Os homens que passavam a me desejar tentavam me agradar de todas as formas, um presente, um perfume roubado, um vestido novo. Sempre que iam para algum lugar, sempre voltavam com algo para mim e tudo isso em troca de um pequeno sorriso ou da simples possibilidade de eu insinuar que poderia querer algum deles comigo a noite. Óbvio que estive com alguns, mas nenhum deles me tomou a força, foram apenas porque eu queria tanto quanto eles. Eu percebi que estava no controle e que poderia fazer com eles o que eu quisesse. E com um deles era melhor do que com qualquer outro. Ele tinha uma brutalidade aparente, mas poucos homens foram tão gentis comigo enquanto estávamos a sós. Não era amor, era só desejo. Um desejo forte, que ambos adorávamos satisfazer.  Ele me colocou um apelido ridículo, “Sininho” apenas por conta dos gritos de prazer que costumava dar. Mais tarde ele descobriu um personagem infantil com esse mesmo nome, e para ele, apenas aumentou a graça desse nome. Nunca gostei do apelido, mas certas marcas somos obrigados a carregar por toda a vida, e esse nome ridículo foi uma dessas marcas.
-  Numa noite estava acompanhando ele, o bando o chamava de Mandacaru, e com a gente estava um rapaz novo que havia acabado de entrar para o bando, chamado de Bode. Íamos para Angicos, encontrar com Lampião. Deixamos o Bode arrumando o fogo e nos afastamos para realizarmos nossos próprios desejos e quando voltamos foi a hora que aconteceu. Alguma coisa riscou o céu, uma estrela cadente ao algo assim, nos jogamos no chão e o pó que caia daquela coisa nos cobriu. Na hora não percebemos nada de errado, mas uns dias depois, quando já estávamos com Lampião em Angicos eu descobri o que havia acontecido conosco. O bando foi massacrado, eu mesmo tomei alguns tiros e apaguei achando que ia morrer, apenas para acordar um tempo depois como se apenas tivesse caído no sono. Tentaram nos matar outras vezes, mas era sempre a mesma coisa, acordando como se nada tivesse acontecido. Fomos levados para o Rio da Janeiro e nessa hora o presidente da época, Vargas, teve sua grande idéia. Na época o Brasil ainda era bastante despovoado, lugar fácil para certas criaturas extrapolarem. Eu mesmo, já havia ouvido histórias sobre monstros que só conhecida da literatura de cordel. Esses monstros eram reais,e descobri que haviam abusos sendo cometidos. Famílias inteiras mortas por um lobisomem, pessoas perdidas na florestas que morriam de fome unicamente por conta de caprichos de curupiras. Meu trabalho, o de Bode e de Mandacaru deveria ir atrás daquelas criaturas que apareciam demais, que chamavam atenção demais sobre si ou que incomodavam as pessoas erradas. Também fazíamos alguns serviços mais sujos, eliminando cidadãos indesejados. Criaram uma divisão pra gente dentro do órgão de Inteligência da época. Sabe, esse órgão já mudou de nome tantas vezes que eu nem ligo mais, apenas faço meu trabalho. Fui treinada pelos melhores, eu e meus companheiros, por assim dizer, e sinceramente, sou ótima no que eu faço pelo que você pôde perceber. O problema é que as vezes eu tenho uma tendência a ser cruel demais. Sabe, por ter sido violentada eu tenho um ódio especial por pessoas que fazem esse tipo de coisa, ainda mais quando o filho da puta faz isso com crianças.
            Nesse momento um brilho cruel brotou nos olhos de Iaciara, e ela parecia estar voltando a se divertir com aquilo. Pegou uma das facas sobre a mesa e rasgou o rosto do boto de forma humana. O rasgo foi feito da testa ao queixo da criatura, que gritou de dor ao ter a metade direita do rosto retalhada. O sangue escorria e manchava a roupa suja do Boto.
            Iaciara se afastou, adorando cada momento, vendo a expressão de dor no rosto dele. Ainda com a faca nas mãos, voltou em direção a criatura e rasgou sua calça. Pegou aquele órgão sexual que havia violado tantas meninas inocentes, cravou a faca na altura da base e veio rasgando por todo o corpo em direção ao prepúcio, dividindo o pênis em duas metades.
            O boto gritava, chorava e se contorcia de dor, e ela apenas olhava, vendo o sofrimento e a poça se sangue que se formava ao redor da cadeira na qual ele estava preso. A arraia, ainda no tanque, apenas via aquilo, estava paralisada em silêncio e pânico, já o poraquê estava morto, sufocado pela falta de água.
            O boto implorou por sua vida, dizendo que nunca mais faria nada com nenhuma outra criança. Implorou dizendo que voltaria para o rio e jamais tomaria a forma humana novamente, mas isso não era suficiente. Ele havia estuprado crianças em troca de longevidade e precisava pagar por isso. Centenas de crianças haviam sido abusadas e ele iria sofrer por cada uma delas.
            Ao fim de toda uma manhã de gritos, dor e sangue, Iaciara finalmente se deu por satisfeita. Enfiou a faca fundo no respiradouro no topo da cabeça humana do boto, torceu, e esperou os últimos espasmos antes da morte.
            Soltou o corpo da cadeira, que caiu inerte no chão. Aos poucos o corpo do homem voltou a ser um boto rosa do Amazonas, jazendo morto no chão da cabana.
            Nesse momento Iaciara, vendo o animal morto no chão, soltou um riso e repetiu para si mesmo:
- Merda, espero não ter problemas com o IBAMA. Acabei de matar uma espécie em extinção. Acho que cometi um crime ambiental. Mas isso é um problema para o General resolver.
            E saiu em direção a porta da cabana, não sem antes quebrar o aquário de vidro onde a arraia estava, deixando-a sufocando até a morte no chão.



* Poraquê é um peixe eletrônico da região do Amazonas. Procure no Google.