A Risada do Bode

segunda-feira, 24 de novembro de 2014 | Published in | 0 comentários

Nota do Autor: O presente conto é continuação de Sangue Negro (parte 01) e Crime Ambiental (parte 02) 

Brasília é uma cidade planejada, toda dividida em setores. Quadras residenciais tem seu lugar certo e entre elas as quadras comerciais, isso sem falar nas quadras destinadas a funções específicas. Uma dessas “quadras específicas” é um grande local chamado apenas de “Setor Policial”, pois num mesmo espaço delimitado podemos encontrar a sede da Policia Militar do Distrito Federal, a sede do Corpo de Bombeiros Militares do Distrito Federal, a sede do Departamento Nacional de Polícia Federal e a sede da Agência Brasileira de Inteligência. Se andar um pouco mais, por dentro desse setor, é capaz de encontrar alguns prédios que normalmente não seriam vistos num dia normal, e num desses prédios se passa essa história. Nas entranhas do Setor Policial, depois de atravessar uma longa avenida e fazer algumas curvas em ruas pouco movimentadas, você irá encontrar um edifício baixo, de cerca de três andares. A construção parece ser antiga, e em sua entrada está uma placa com uma inscrição que diz apenas “ABIN – Arquivo”, mas isso é apenas a fachada do que acontece de verdade nesse local.
Na verdade esse prédio esconde uma extensa instalação, com pelo menos uma dezena de andares subterrâneos, e no último andar, no mais baixo dos níveis, encontra-se o órgão vital da mais secreta organização do governo brasileiro. Eles não tem um nome fixo, seus relatórios são secretos e poucas pessoas, até mesmo do alto escalão do governo, sabem que eles existem. E no fundo de uma sala propositadamente mal iluminada, um general que já passou a idade de se aposentar fica polindo sua mão de mecânica de metal enquanto dá ordens que implicam a vida e morte de seres humanos e alguns outros que são quase isso.

Era o início da noite e o general estava polindo sua prótese. Apenas a mesa na ponta da sala estava iluminada diretamente e ele estava sentado atrás dela. A prótese brilhava refletindo a luz fraca do lugar. Era uma mão esquerda, de cor metálica prateada, e não tinha nenhum movimento sendo apenas estética. O general estava com um uniforme impecável, tinha um porte físico excelente para a sua idade além de poucos cabelos brancos bem aparados que contornavam a sua cabeça, já que em cima nenhum pêlo mais crescia. A chegada de seu convidado fora anunciada por um tenente que lhe auxiliava como secretário. O general se levantou, ajeitou o uniforme e foi dar boas vindas ao recém chegado:
- Boa noite Dr. Fernando Ueshiba.
- Boa noite General Otávio Castro
            No tom de voz utilizado e no cumprimento formal era possível notar o desprezo que sentiam um pelo outro. Ali estavam dois homens que se odiavam profundamente e não tinha a menor vergonha em esconder esse ódio. O Dr. Fernando Ueshiba, aparentava estar beirando os 50 anos, descendente de orientais como o sobrenome dava a suspeita, estava usando um terno bem cortado preto e na lapela brilhava em dourado a insígnia de Delegado da Polícia Federal.
            Sem muita cerimônia o Dr. Fernando se aproximou mais, sentou-se numa das poltronas em frente a mesa do general e disse ainda com tom de desprezo na voz:
- Por que o você me chamou aqui? Sabe que não temos nenhum assunto a tratar, não desde aquele episódio no Mato Grosso onde os seus monstros de estimação quase acabaram com a minha operação.
- Também não gosto da sua presença aqui Doutor Fernando e não o teria chamado se não fosse essencial – completou o general – Além disso, meus “monstros” ainda são mais efetivos do que qualquer um dos seus agentes.
            A tensão tomou conta do ar entre aqueles dois homens. Um breve momento de silêncio tomou conta da sala, silêncio que só foi quebrado com o som da mão metálica do general batendo na mesa. Logo após o general respirou fundo e começou:
- Pois bem Doutor Fernando. Eu sei da sua história, acompanhei-a de perto e apesar de não nos darmos bem, agora temos objetivos em comum.
            Nisso o delegado bufou e prontamente respondeu:
- Não general, não temos objetivos em comum. Você dirige uma agência secreta de psicopatas comprometidos em fazer a sua vontade. Já eu comando uma delegacia especializada, subordinada à Casa Civil e comprometida com a democracia.
- Ora Doutor, no fundo sabemos que nossa função é a mesma, e que a sua Delegacia foi criada apenas para afrontar a mim – Respondeu o general com um sorriso nos lábios.
            Antes mesmo que o delegado pudesse responder, o general completou:
- Doutor Fernando, eu conheço sua história, eu sei quem você é. Começou como agente da Polícia Civil de São Paulo a mais de vinte anos atrás. Durante o seu tempo de agente você se formou em direito e logo depois foi aprovado no concurso para delegado federal. Olha, seu caso é raro, pouquíssimos delegados podem dizer que se formaram em direito no Largo do São Francisco e você é um desses poucos.
            Para o Doutor Fernando era estranho ter um quase inimigo sabendo tanto sobre sua vida. E como delegado ele não poderia deixar por menos, e assim, com uma voz igualmente incisiva, retrucou ao general:
- Eu também conheço você general. Foi aprovado para a Escola Preparatória de Cadetes do Exercito, e com pouco mais de 18 anos saiu de lá direto para a Academia Militar das Agulhas Negras. Após 4 anos saiu de lá, no auge da ditadura, como Aspirante à Oficial e em pouco tempo já estava como tenente ajudando os outros militares a se manterem no poder. Ainda como tenente foi designado para acompanhar a caça aos guerrilheiros na Guerrilha do Araguaia e foi aí que você perdeu a mão.
            O delegado nesse momento bufou, e mantendo o tom sério de sua voz, continuou:
- Um jovem oficial é designado para interrogar uma pessoa que estava ajudando os guerrilheiros a se esconderem em meio ao pantanal. Como que por instinto, o jovem oficial viu uma pessoa, que parecia ser um homem de cabelos ruivos, e tentou agarrá-lo pelos cabelos. O oficial não se atentou para o fato de que o cabelo dele estava esvoaçante, mesmo numa noite sem vento e dentro de um barracão do exército. Também não se atentou que os pés do rapaz estavam virados para trás. Simplesmente foi lá, achando que ele era só mais um guerrilheiro, sem camisa, amarrado a uma cadeira. Tentou agarrá-lo pela nuca, puxando-lhe os cabelos e nesse momento a mão foi completamente carbonizada. Torrada até os ossos. E em meio a dor, apenas viu a criatura se soltar das algemas, como se nunca tivesse sido preso. Viu a criatura ir em sua direção, rir e desaparecer num piscar de olhos. Como visto General, eu também sei a sua história!
            O general tinha que admitir para si mesmo que estava impressionado. Lendas sobre como ele havia perdido a mão esquerda se proliferavam pelo exército, todas completamente erradas. Aquele homem ali na sua frente sabia a verdade e fazia questão de contá-la ali naquele momento.
            Então o general se levantou, colocou sua mão metálica sob a luz, fazendo com que brilhasse mais forte, e disse:
- Doutor, esse foi meu único erro. Carrego-o por toda a vida, e você sabe muito bem que nunca mais errei novamente.
            Ambos ali se sentiam desconfortáveis. Duas pessoas que investigaram a fundo a vida um do outro, que sabiam coisas que poucos sabiam. Cada um era um risco para o outro e mesmo assim estavam ali. Nesse momento, o general resolveu colocar as cartas na mesa e encerrar aquela discussão sobre quem sabia mais sobre o outro:
- Pois bem doutor. Apesar de você negar, nossos trabalhos são parecidos. Depois do meu contato com uma criatura que eu acreditava só existir em lendas, o Comando do Exército resolveu me colocar para lidar diretamente com esses monstros. E assim eu comecei a ajudar um outro general, que na época comandava esse departamento ainda no antigo SNI. Com a morte dele, eu assumi, antes mesmo do fim da ditadura. Algumas pessoas acharam que eu estava tendo influência demais nesse assunto, e então, no início dos anos 90 foi criada a sua Delegacia de Assuntos Sobrenaturais, ligada a Inteligência da PF. Você está nessa delegacia desde a sua época de academia, mas tem somente 10 anos que você chefia esse trabalho, logo eu tenho muito mais experiência que você. Tanto o meu departamento ligado a ABIN quanto a sua Delegacia ligada à PF se prestam para apenas um serviço: contenção.
            A expressão no rosto do Dr. Fernando era de estranheza, ele com certeza não via seu trabalho dessa forma. E diante disso o general continuou:
- Sim, fazemos um trabalho de contenção. Quando uma criatura sobrenatural começa a interferir demais num determinado local, é nossa vez de entrar em ação. Essas “lendas” acabam prejudicando a população normal, e nosso trabalho é garantir que elas continuem sendo apenas lendas para a maioria da população, e assim evitamos pânico. Porém, meu trabalho é mais amplo que o seu. Eu não me limito apenas a seres sobrenaturais, eu me livro de tudo aquilo que começa a chamar atenção demais. As vezes um serial killer some, um estuprador aparece morto dentro de uma cadeia, tudo isso é trabalho meu. Eu sumo com aquilo que a sociedade hipócrita se recusa a punir de verdade. E para tudo isso, eu tenho a ajuda dos meus operativos, por assim dizer.
            O rosto do general estava duro e frio. E continuou falando calmamente:
- Sei que você acha absurdo, mas nem sempre as regras conseguem resolver o problema. As vezes a única solução é sumir com aquele que causa a discórdia. Como eu disse, meu trabalho é retirar da sociedade de forma definitiva aqueles que atrapalham o status quo ou que chamam atenção demais sobre si. Um assassino que se recupera ou um ser sobrenatural que quer se esconder dos seres humanos não me incomoda, mas um serial killer prestes a ser solto unicamente por uma limitação ridícula de 30 anos de prisão ou um Pé-de-Garrafa matando e arrancando a língua de seres humanos, isso passa a ser problema meu e eu resolvo do meu modo. E é por isso que lhe chamei aquiDr. Fernando, você não está aqui por conta de seu trabalho na PF, mas sim por algo que lhe atormenta desde os seus anos como agente da Polícia Civil em São Paulo.
            Nisso o general estalou os dedos da única mão que lhe restava. Do meio das sombras do gabinete mal iluminado saiu um jovem negro, aparentando ter 17 anos. Esse jovem possuía um pequeno fiapo de barba negra crescendo no queixo, usava um terno completo de excelente corte e que não condizia com sua idade aparente. Sobre o bolso do paletó havia um bordado em dourado, três estrelas, formando um arco. Ele carregava uma pasta nas mãos. O delegado olhou de soslaio para o jovem, e a raiva transbordava em seus olhos, e nisso disse entre dentes num tom de voz carregado de desprezo:
- Bode!
            Calmamente o jovem virou para o delegado e disse num tom cortês:
- Senhor Fernando – cabe aqui mencionar que ele enfatizou cada sílaba da palavra “senhor” – Me chamo Emiliano Cândido da Silva, esse nome pelo qual o senhor me chamou não me agrada. Prefiro ser chamado de “Dr. Emiliano”, pois após todos esses anos, doutorados não me faltam, ao contrário do senhor bacharel em direito.
            Sem se importar muito com a reação do delegado federal, Emiliano jogou a pasta em seu colo e continuou:
- Como o senhor sabe, eu dispenso apresentações. Essa pasta em seu colo é a ficha criminal e algumas informações de José Caetano Ferreira Sousa, conhecido como “Terror do ABC”. Nos anos 80 ele foi conhecido por seqüestrar, violentar e matar jovens no grande ABC paulista. E como o senhor também sabe, foi o senhor quem localizou e capturou esse bandido ainda na sua época de policial civil em São Paulo. Ele foi considerado insano pelo judiciário e recolhido a um manicômio, porém em alguns meses ele completará 30 anos de reclusão e terá de ser solto, conforme entendimento do STF. Porém, ele mesmo já afirmou que assim que sair, a primeira coisa que fará será matar e violentar novamente. O general me incumbiu de coordenar a missão que levará a morte desse bandido antes mesmo que ele faça mais uma vítima, porém não temos informações sobre para onde ele irá após sua saída do manicômio judicial. O que nos leva ao senhor, a única pessoa que ainda tem informações sobre esse caso e tem contato com os familiares dele. Pelo que sei, as pistas que levaram a captura foram dadas por pessoas da família desse “terror”.
            O Delegado estava perplexo. Uma informação como essa com toda certeza teria sido difícil de conseguir. Ele ainda guardava na cabeça o nome de alguns parentes do “Terror do ABC”, uma mãe já idosa e alguns irmãos que simplesmente resolveram esquecer a existência desse membro da família. Era uma família que já havia sofrido muito, tendo de mudar de estado para se livrar da imagem que o assassino tinha deixado. Viviam agora no interior da Bahia e apenas o Delegado sabia os seus nomes de cabeça.
            Eram nomes que ficaram na sua memória. Difícil esquecer uma mãe, que desesperada comparece a uma delegacia de madrugada para denunciar o próprio filho, assassino e pedófilo. Ele, escondido dos demais colegas da policia, ajudou aquela senhora e sua família a abandonarem o ABC e começar de novo em outro local, mas isso ninguém da polícia sabia. Eles ainda trocavam esporádicas cartas. Ou alguém da família tinha falado demais ou alguma dessas cartas havia sido interceptada, não tinha como saber.
            Restava apenas esquecer como eles tinham aquela informação e agir de verdade conforme sua consciência. Nisso, o Delegado disse:
- Não vou colaborar com vocês. Vocês me pedem para que eu ajude em um assassinato a sangue frio. As leis podem não ser perfeitas, mas estão ai para serem cumpridas, ainda mais por mim, um delegado da PF. Não vou compactuar com isso. Eu faço um trabalho, mas ajo dentro da lei e seguindo as regras. Saber que vocês me pedem que colabore num assassinato vai contra tudo que eu acredito. Prefiro o peso na consciência do que matar alguém pelo simples risco dessa pessoa existir. Não é isso que eu aprendi na faculdade, não é isso que aprendi com o direito criminal e não é isso que aprendi em meus anos como policial.
- Ora Doutor. Essa não deve ser a primeira vez que o senhor precisa violar alguma regra. Só pedimos algumas informações, suas mãos continuarão limpas. – Disse Bode com um sorriso nos lábios.
- Não!Vocês simplesmente acabaram me provando que eu estou certo. O General aqui realmente comanda um grupo de monstros sanguinários. Não vou ajudar vocês. Você Bode, e seus amigos não são diferentes das criaturas que capturamos. E saibam que pela forma como vocês agem, mais cedo ou mais tarde eu receberei ordens de vir atrás de vocês.
            Nisso, Dr. Fernando Ueshiba jogou a pasta no chão, levantou-se e saiu da sala, escoltado pelo silêncio das duas outras pessoas ali presentes.

- Eu sabia que ele iria se recusar a ajudar.
            Foi o que Bode disse, com um leve sorriso nos lábios.
- Se sabia que ele não iria ajudar, por que me pediu para marcar essa reunião com ele?
- Ora general, parece que você não sabe se divertir. Ao ver as notícias na televisão sobre a morte do “Terror do ABC” ele saberá que fomos nós que fizemos e irá ficar se remoendo por não ter tentado nos impedir.
- Você é louco. Todo mundo acha que você é o mais sensato dos três, mas você é o mais cruel.
            E após dizer essas palavras, o general sentou-se em sua poltrona e riu, dizendo:
- É por isso que gosto mais da sua companhia do que da companhia dos outros. Mas não vá contar isso a eles.
- Eu sou um gênio louco e você gosta disso, general. E tudo é culpa de um velho padre. Na fazenda todo mundo sabia que eu era mais esperto que os demais, mas quis o destino que um velho padre resolvesse me ensinar a ler e escrever, o que aprendi bem rápido. Quis o destino também que um bando desgarrado de lampião fosse até a fazenda onde eu estava com o padre, e quis ainda o destino que eles precisassem de alguém que soubesse ler as instruções de um mapa...
- E eles te obrigaram a ir com eles e você estava com os outros dois quando do meteoro. E você usou todos os seus anos a mais para estudar sobre tudo e mais um pouco. Você tem doutorados em dezenas de áreas diferentes nas mais diferentes universidades do mundo. Emiliano, eu já ouvi essa história dezenas de vezes.
- Ahh general, vocês militares tem o problema de sempre irem direto ao ponto. Em pouco tempo o bandido vai sair livre, eu vou matá-lo e com isso mexer um pouco com a cabeça do nosso delegado pelo simples prazer de fazer isso.


No noticiário da noite de um grande canal de televisão a notícia foi a principal manchete. O Terror do ABC havia sido assassinado em Feira de Santana, interior da Bahia, menos de um mês após ter saído do manicômio judicial. O assassino era um jovem de 17 anos que ele havia encontrado na rua e tentou abusar sexualmente. Não precisa nem dizer que o jovem sumiu sem deixar qualquer rastro.

E vendo essa notícia, Emiliano Cândido da Silva, o Bode, soltou uma risada que ecoou por todo o apartamento funcional em que morava na Asa Sul em Brasília. 

Crime Ambiental

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Nota do Autor: O presente texto é continuação do conto Sangue Negro

Para o restante do país chega a soar estranha uma afirmação como essa, mas um dos maiores eventos de samba do Brasil é realizado em Manaus. Anualmente o “Samba Manaus” no sambódromo da cidade atrai uma multidão para curtir um samba, se divertir e dançar; por óbvio o clima de namoro entre os presente é forte. Dificilmente um homem consegue sair da festa sem conseguir beijar pelo menos uma bela mulher. E justamente por esse motivo que aquela era a oportunidade perfeita para conseguir mais uma vítima.
Tudo bem, “vítima” era uma palavra excessivamente forte, afinal de contas ele não fazia nada demais. Conseguir sexo, consensual diga-se de passagem, dar um nome falso, um número de telefone mais falso ainda, e depois sumir, ainda não era considerado crime, apesar de ser uma conduta reprovável... para algumas pessoas, é claro.
Aquela noite, indo para a festa, ele tinha se arrumado para chamar atenção da mulherada. Era alto, ombros largos e um corpo que parecia ter sido construído a base de muita academia. Não era excessivamente forte, mas na medida. Por onde andava as mulheres paravam e olhavam para ele. Estava vestindo uma bermuda de alfaiataria comprida até pouco abaixo dos joelhos e uma camisa com gola em “V” de cor clara que, por ser justa, salientava ainda mais a beleza do seu corpo. Além disso, usava também um belo chapéu de abas curtas, branco com listras pretas, e que compunha muito bem o visual.
Quando chegou ao evento, o lugar estava lotado. Milhares de mulheres, lindas, praticamente desfilavam pelo lugar, dançando, sorrindo e bebendo, e todas elas eram alvos em potencial. Ele com toda certeza sairia dali acompanhado por alguém, e alguém linda, afinal de contas seus padrões eram altos.
            E foi num momento como esse, andando meio que sem rumo, observando a beleza das mulheres que ali estavam que viu a escolhida daquela noite. Ela deveria ter por volta de 1,75 de altura, tinha a pele escura e os cabelos lisos e negros, lábios carnudos e olhos também negros e profundos. Algo nela revela que seus antepassados eram negros e índios, numa combinação de genes que não se poderia dizer qual predominavam. Usava um vestido branco com detalhes em vermelho, colado ao corpo escultural. Ela estava dançando sozinha no meio da multidão e a luz do local parecia iluminar apenas a ela, fazendo com que ela fosse o objeto de desejo de todos os homens e a inveja de todas as mulheres (se bem que algumas das mulheres ali presentes desejavam seu corpo e alguns dos homens lhe tinham inveja). Era uma mulher espetacular, que chamava atenção mesmo não querendo fazer isso. Era uma gostosona, uma delícia, que conseguia ser ao mesmo tempo bonita, sensual e voluptuosa.
            Ele foi em direção a ela e entrou em seu campo de visão. Quando seus olhares se cruzaram, ele deu um sorriso e ela sorriu de volta, e esse era o sinal de que ele precisava. Se aproximou e começaram a dançar. Eles nunca tinham estado juntos antes, mas dançavam como se já fizessem isso a anos. Dançando, eles transmitiam um tremendo desejo e sem mal trocarem um palavra estavam se beijando. Os beijos eram cada vez mais intensos, parecendo que iriam fazer sexo ali mesmo, as mãos percorriam os corpos um do outro demonstrando desejos que em breve seriam saciados.
            Saíram dali e foram em direção a zona portuária do Rio Amazonas por exigência dele. Pegaram um taxi e praticamente fizeram um show particular para o taxista. Desceram, ele pagou a corrida. Continuaram se beijando enlouquecidamente, se agarrando, deixando o desejo transparecer para quem quisesse ver.  Num momento ele a agarrou pelos ombros e olhou no fundo de seus olhos, e foi nessa hora que um forte e bem colocado golpe acertou sua jugular, interrompendo o fluxo de sangue e o levando ao desmaio em poucos segundos. Sua visão ficou turva e foi escurecendo, ele foi caindo no chão, e antes de apagar completamente pode ver um sorriso de vitória no rosto daquela bela mulher.


            O lugar era uma casa de madeira que parecia ser longe da cidade, afinal o único barulho que se ouvia era o correr das águas do Amazonas. Ainda era noite, mas não faltava muito tempo para o amanhecer, e por isso estava ainda muito escuro e o fato de estarem longe da cidade deixava o local mais escuro ainda. Ele fora amarrado numa cadeira no meio do único cômodo da casa e estava desmaiado. Na outra ponta, estava ela, não mais usando o vestido e sim uma calça preta e uma camisa tipo pólo feminina, também preta. Na camisa chamava a atenção uma imagem sobre o peito, um arco horizontal com três estrelas bordadas em dourado. Ela estava mexendo numa mesa, a qual continha um grande aquário cheio de água do rio, mas sem nenhuma criatura viva, além de algumas facas, armas de fogo e um telefone via satélite.
            Ela se espreguiçou, como se fosse iniciar um trabalho simples e monótono, estralou os dedos e depois agarrou uma das facas que estava sobre a mesa. Aproveitou que sua vítima ainda estava apagada, amarrado na cadeira, e resolveu conseguir algumas informações a mais. Tirou o chapéu do homem e confirmou a sua certeza, vendo um orifício no topo da cabeça dele, o qual se mexia levemente e de forma ritmada. Não havia dúvidas de que aquele homem respirava por aquele orifício. Nisso olhou fixamente para o chapéu dele que ainda estava em sua mão esquerda. Levantou o chapéu até a altura de seu rosto, apontou a faca que estava em sua mão direita para o chapéu e disse numa voz firme e direta, com um leve sotaque do nordeste:
- Me conte a história dele e talvez eu te deixe ir embora. Quero saber algumas respostas.
            Nisso o chapéu aos poucos foi se transformando numa arraia de água doce. Ela mais do que depressa jogou a arraia no grande aquário que estava sobre a mesa. A água entrou pela boca da arraia e saiu pelas guelras, parecia que a criatura voltava a respirar. Após algumas respiradas, a arraia projetou parte do corpo para for do tanque e disse:
- Finalmente aconteceu... eu sabia que mais dia ou menos dia as merdas que ele fez acabariam por colocar a gente em encrenca. – E nisso voltou-se para dentro do tanque novamente para continuar a respirar.
            Então ela se aproximou do aquário, abaixou-se quase colando seu rosto no vidro, e numa voz mais autoritária ainda disse:
- Eu não quero saber o que ele fez. Tudo que ele fez eu sei, mas o único motivo dele ainda estar vivo, e você também, é que eu não sei por que ele faz isso. Eu quero uma resposta e uma resposta agora.
            Bolhas saíram do aquário, quase como um suspiro da arraia, que então, projetou-se novamente para fora do aquário e começou a falar:
- Bem, você já deve saber que ele não é humano. E já deve saber também que ele é um boto. Não um boto qualquer, mas um boto que pode se transformar em humano nas noites de festa e procurar se acasalar com mulheres humanas. As lendas são reais, e ele deve ter uma quantidade razoável de filhos espalhados por aí que jamais saberão quem é o pai.
            Nitidamente sem paciência, a mulher retrucou:
- Você só está me dizendo coisas que eu já sei. Me conte logo o que eu quero saber. Não tô aqui pra perder meu tempo descobrindo que certas lendas são reais, disso eu sei a muito tempo. Não é por ele ser boto que ele está aqui, ele está aqui pelo que fez com aquelas meninas, e é isso que eu quero saber.
            Mais uma vez a arraia tinha voltado para dentro do aquário para respirar. A arraia abriu a boca e deixou entrar uma quantidade de água maior que o normal, e então projetou seu corpo para fora do aquário novamente e disse:
- Tudo bem. Não vou mais enrolar. Ele é diferente dos demais botos. Como reza a lenda, uma arraia sempre acompanha o boto para ser o seu chapéu e já fazem mais de 50 anos que eu acompanho esse aí. No começo era divertido, eram tempos mais simples, com pessoas mais inocentes, íamos as festas, ele dançava, arrumava uma mulher e satisfazia suas necessidades. Eu nunca senti atração por fêmeas humanas, mas acabei me acostumando a ele, antes eu era um simples animal nadando pelo rio... Junto dele eu passava a ter consciência, pensar, passava a ter essa dádiva que é ser consciente sobre mim e sobre o mundo.
            A bela mulher parecia cada vez mais sem paciência. Respirava fundo, quase bufando de raiva. A arraia não se mostrou insensível a isso, e com medo, continuou:
- Depois de algumas andanças ele simplesmente resolveu que não voltaria mais para o rio. Ao invés de esperar as festas acontecerem ele iria ir atrás das festas, acho que foi nessa época que ele se viciou em sexo, mas não sei ao certo. Com o passar dos anos ele pôde perceber que envelhecia de forma diferente, algumas vezes ele passava muito tempo sem demonstrar nenhum sinal de envelhecimento, outras vezes ele parecia envelhecer anos numa única semana, e o mesmo acontecia conosco. Demorou um pouco, mas percebemos que todas as vezes que ele fazia sexo com uma virgem ele não envelhecia, porém quando a garota já havia sido tocada por outros homens ele parecia envelhecer mais rápido. Durante anos foi fácil nos mantermos jovens, sempre haviam garotas jovens por aqui. Não que ele dispensasse as outras, para ele sempre era bom fazer sexo, mas pelo menos uma vez por semana a garota deveria ser virgem se não, nós envelhecíamos. Só que os tempos mudaram, veio esse revolução sexual e as mulheres pararam de se importar em estarem imaculadas para os futuros maridos. Ficava cada vez mais difícil encontrar uma mulher virgem e passamos a envelhecer mais rapidamente. Num ato de desespero para se manter sempre jovem, ele teve uma idéia. Resolveu procurar mulheres que ele sabia que com certeza ainda mantinham sua virgindade. E assim ele passou a procurar mulheres cada vez mais novas, muitas vezes meninas. E os anos se passaram e as meninas foram ficando cada vez mais jovens, até que ele começou a usar a força para ter o que queria. Já a alguns anos que ele usa da violência contra meninas, muitas com menos de 10 anos, tudo isso para se manter jovem e poder continuar fazendo sexo com as mulheres da região. A décadas que ele não precisa assumir a forma do boto e tudo isso por conta da virgindade que ele toma dessas meninas.
            Um súbito ódio tomou conta daquela mulher. Ela precisou se controlar para poder falar. Aquele boto era um monstro, violentando meninas, tirando sua inocência, apenas para continuar sempre jovem e sair por aí engravidando outras mulheres mais velhas que caiam na sua lábia. Fizeram bem em enviá-la para caçar essa criatura, pelo menos as meninas da região poderiam não ser mais incomodadas por ele. Porém algo mais a incomodava, algo que parecia ter passado despercebido... E então lembrou-se e disse para a arraia:
- Você sempre fala em “nós”. Há mais alguém além de você e o boto?
            Nisso, a mulher foi agarrada por trás e sentiu um aço frio tocar sua garganta. O boto havia cortado as cordas que o prendiam e agora estava com a lâmina de um punhal apontado para a garganta dela pronto para cortá-la. O boto disse rindo de prazer:
- Um boto sempre anda com uma arraia que usa como chapéu e com um poraquê* que transforma em punhal e foi com ele que eu cortei as cordas e me soltei. Agora quem vai te matar sou eu, mas antes vamos nos divertir um pouco, estou te desejando desde a hora na festa e ainda não me satisfiz com você. E aquelas meninas, ora, todas gostam do boto, garanto que elas se divertiram, todas as centenas que eu tirei a virgindade nos últimos anos. Elas deveriam se sentir honradas, o boto não faz sexo com qualquer uma.
            Após essas palavras o boto gargalhou. As gargalhadas cresciam cada vez mais, assim como o ódio dentro daquela mulher. Ela respirou fundo e pisou com força no pé do boto, e num movimento rápido agarrou o braço que segurava o punhal e afastou-o de sua garganta. Com mais espaço para agir, virou-se de acertou uma cotevelada na garganta do boto, depois torceu seu braço e tomou-lhe a faca, jogando a arma o mais longe que podia. Afastou-se um pouco, apenas a distância para acertar um chute forte no estômago daquela criatura. O boto caiu no chão gritando de dor, e logo em seguida a mulher montou em cima dele, despejando dezenas de socos em seu rosto, até que ele parasse de se mexer.
            O boto ainda respirava apesar do rosto encharcado de sangue, estava semi consciente. Ela se levantou, enfiou dois dedos no respiradouro no alto da cabeça e ergueu o boto, que voltou a consciência plena e gritou desesperadamente. Levou-o de volta a cadeira da qual ele havia se soltado, e no meio do caminho pegou outro pedaço de corda para amarrá-lo.
            Amarrou-o ainda mais forte que na primeira vez e dessa vez revistou-o completamente atrás de outros objetos que pudessem ser utilizados para que ele se soltasse. O sol nascia ao fundo, sobre o rio. Ela respirou, se limpou um pouco da sujeira do chão, se aproximou da criatura que ainda tinha forma humana, olhou no fundo dos olhos dele e disse:
- Olha, não gosto de falar sobre mim. Mandacaru sempre conta sua história de vida para quem ele vai matar, mas eu detesto fazer isso, acho completamente ridículo, irrelevante desnecessário. O problema é que de alguma forma ele se diverte fazendo isso e eu nunca entendi por que. Eu prefiro ser mais direta, fazer o serviço logo e depois ir embora. Só que no seu caso eu vou abrir uma exceção e assim você vai saber o porquê de eu te fazer sofrer antes de te matar.
            Ela se afastou um pouco. Olhou para o lado e viu que a faca voltou a ser o poraquê, que agonizava num canto da cabana por não estar dentro da água. Ela sorriu com a agonia do peixe e sua morte lenta, então começou sua história:
- O dia ao certo em que nasci eu não sei, mas na minha antiga certidão de batismo dizia que foi no dia 17 de dezembro de 1921, perto do natal, numa casa simples em Imperatriz, Maranhão. Provável que eu tivesse nascido antes, mas isso não faz mais muita diferença. Com o tempo a época que você nasceu deixa de ser tão importante, ainda mais quando não mais se pode morrer. Minha mãe era descendente de índios e meu pai negro, filho de ex escravos. Acabei recebendo um nome por sugestão da minha mãe, o padre não gostou muito mas acabou aceitando que meu nome fosse Iaciara da Silva. Simples e direto, como eu costumo ser.
- A minha vida foi dura como a de qualquer pessoa pobre no Brasil. Meu pai trabalhava carregando trens na ferrovia da região. Sabe, Imperatriz sempre foi um entroncamento comercial do Maranhão, muita coisa passava por lá: madeira e produtos da terra, além da produção de várias fazendas de cidades próximas. A vida era dura com meu pai trabalhando de sol a sol e minha mãe costurando roupas, mas eu dei sorte e cresci sem ter passado muita fome na vida. À medida que fui crescendo passei a chamar a atenção dos homens. Na época eu não entendia porque, era muito inocente... Mas a inocência é feita para ser perdida.
- Eu devia ter por volta de 13 anos de idade, pouco mais do que uma criança, mas já uma moça, como diziam por lá. Ele era mais velho que eu, filho de um fazendeiro de uma região próxima, nem mesmo morava na mesma cidade que eu... Simplesmente me viu na rua, logo após ter entregado o almoço para o meu pai na estação de trem... Ele me agarrou pelo braço e me levou pro meio do mato... E foi lá que ele me violentou. Eu não sabia direito que estava acontecendo, apenas sentia vergonha, e sentia muita, muita dor... Mas tinha algo que eu sentia mais do que tudo isso: era ódio. Nunca odiei tanto uma pessoa como aquele homem. Ele estava lá em cima de mim, e eu não podia fazer nada, a não ser chorar e odiá-lo com todas as minhas forças. Depois de ter me usado da forma como quis, ele se levantou, se vestiu e jogou algumas notas de dinheiro em cima de mim. Fiquei vagando pela cidade, com minhas roupas rasgadas e completamente humilhada. Achava que a culpa tinha sido minha, que eu deveria ter dito “não” com mais força. Rezei pedindo para que Deus me explicasse porque aquilo tinha acontecido comigo, mas minhas preces não foram atendidas. Somente cheguei em casa a noite, ainda coberta com a vergonha do que tinha acontecido.  Meus pais me esperavam e ao olharem para mim já sabiam o que tinha acontecido. Meu pai, com toda a simplicidade que lhe era característica me perguntou o que tinha acontecido, apenas para confirmar sua suspeita, e eu lhe contei. Vi seus olhos se encherem de lágrimas, junto com os olhos de minha mãe, quando lhes disse quem havia feito aquilo comigo e uma tristeza sobrenatural parecia ter se abatido sobre eles. Mas as coisas ainda poderiam ficar muito piores. Nesse momento vi meu pai se levantar, e a tristeza havia se transformado em fúria. Antes mesmo de a primeira palavra sair de sua boca eu sabia que ele iria me acusar de ser culpada por tudo, e foi exatamente isso que aconteceu. Fui xingada de palavras tão baixas que ainda ecoam na minha mente em noites de insônia. Meu pai me bateu e me arrastou pelos cabelos por toda a cidade, me chamando de “puta”, “vagabunda” e coisas piores. Naquela hora achei que meu destino ia ser passar o resto dos meus dias num bordel vagabundo de beira de estrada, tendo que servir a homens mais nojentos do que aquele que havia me violentado.
            Iaciara parou para respirar um pouco. Contar essas velhas lembranças ainda doía. Ainda podia sentir as grossas mãos de seu pai lhe batendo por algo que ela não tinha culpa nenhuma. Porém, também pensavam na vingança perpetrada anos depois contra o homem que a havia violentado, e isso sempre lhe dava um sorriso e força para continuar:
- Mas algo inesperado aconteceu naquele dia. Um homem que passava pela cidade, um árabe caixeiro viajante viu meu pai me espancando no meio da rua e perguntou o que acontecia. Meu pai contou como eu havia me entregado para o filho de um rico fazendeiro, como a culpa era minha, como eu havia desgraçado sua honra. E nessa hora eu vi um lampejo de piedade no rosto do árabe. Ele sorriu e disse ao meu pai que ficaria comigo e me levaria embora da cidade. Sem uma única muda de roupa, subi no carroção dele e puxada por dois jumentos, sai da única cidade que conhecia e da única família que tinha.
            Já era dia e ele continuava sua história. O calor impregnava a cabana e o sangue no rosto do boto havia secado. Ele ainda estava consciente e ouvia o relato. E nos olhos dele o orgulho havia sido substituído por desespero. O boto finalmente descobriu que não havia forma de sair daquele lugar vivo. Iaciara continuou:
- Sabe, o árabe era gordo. Gordo demais para uma pessoa que trabalhava andando de cidade em cidade. O nome dele não importa muito, da mesma forma que o nome do coronel e do filho dele não importam agora... Mas quando o árabe me levou, era óbvio que não apenas a piedade o havia incentivado. Na primeira noite que passei com ele na estrada, eu senti suas mãos por baixo de meu vestido, me acariciando. O toque dele era delicado, gentil, suave, mas depois do que havia acontecido aquilo me assustava. Eu ainda estava com medo, atormentada com as lembranças do que havia acontecido naquele dia e me retrai. Ele, gentil como sempre, me disse que não deveria ter medo. Ele me disse que aquilo poderia ser bom, desde que eu me acalmasse. Não sei se era a natureza dele ou a minha situação, mas naquela noite ele apenas dormiu junto a mim, e eu senti o calor de seu corpo junto ao meu e me senti reconfortada por conta disso. Alguém finalmente estava me protegendo. Aos poucos nossa intimidade foi aumentando, ele me fazia leves carícias durante a noite e eu fui começando a me habituar aquilo e a gostar do seu toque. O que me causava medo passou a me causar um certo prazer. Não demorou muito para que eu acabasse me entregando a ele, dessa vez com uma pequena noção de consentimento, e pela primeira vez pude sentir prazer com um homem. No dia seguinte, quando acordei, ele havia separado um vestido, dentro os melhores que ele vendia, e o deu para mim. Era um vestido simples, mas o melhor que já tinha usado na vida. Nossa relação continuou dessa forma, sempre que ele fazia sexo comigo, no dia seguinte eu acaba por receber um presente. Sexo passou a ser uma espécie de moeda de troca, e não demorou muito para que eu soubesse que poderia exigir dele o que eu quisesse em troca de uma noite de carícias. Eu não amava aquele árabe velho, mas gostava muito dele. Ele foi bom pra mim e me mostrou que sexo poderia ser prazeroso.
- Passamos alguns anos juntos, rodando por cidades do interior do nordeste, vendo pequenos utensílios que as pessoas usavam. Até que, andando pelo interior de Pernambuco eu o vi. Sua imagem era imponente, um homem forte, de pele bronzeada, montado num cavalo e usando um gibão de couro. Os anéis em seus dedos brilhavam com o luz do sol e o sorriso que ele me deu quando me viu trouxe a mim desejos que nunca tive com o árabe. Eu olhava o cangaceiro pelas ruas, admirando-o, desejando-o. E o velho parecia ter percebido isso no meu olhar. Ao invés de me bater ou me expulsar, ele percebeu que nosso tempo juntos tinha acabado. O árabe era um homem integro e após me dar um longo abraço, me deixou partir com o cangaceiro.
            As lembranças de Iaciara ficavam menos amargas nesse pedaço da história e um esboço de sorriso parecia surgir de seus lábios.
- Montei com ele em seu cavalo e fomos embora dali. Ele fazia parte do bando de Lampião, não era um dos membros importantes mas ainda assim estava no bando e era um homem bonito. Naquela época eu já tinha mais formas de mulher e a menina medrosa havia ficado para trás. Aquele homem estava comigo, sabia o que queria e ao lado dele parecia que nada de mal iria me acontecer. O problema é que com a mesma facilidade com que ele me conquistou, parecia que havia enjoado de mim. Tive com ele momentos de felicidade muito intensa, uma época de doces lembranças, mas ele passou a não mais me procurar e a ir atrás de outras mulheres assim que estava perto o suficiente de uma cidade. Isso me magoou, mas serviu para me fazer perceber que ele não era o único homem que me olhava com desejo. Outros homens do bando me desejavam e isso mostrou ter sua utilidade. Os homens que passavam a me desejar tentavam me agradar de todas as formas, um presente, um perfume roubado, um vestido novo. Sempre que iam para algum lugar, sempre voltavam com algo para mim e tudo isso em troca de um pequeno sorriso ou da simples possibilidade de eu insinuar que poderia querer algum deles comigo a noite. Óbvio que estive com alguns, mas nenhum deles me tomou a força, foram apenas porque eu queria tanto quanto eles. Eu percebi que estava no controle e que poderia fazer com eles o que eu quisesse. E com um deles era melhor do que com qualquer outro. Ele tinha uma brutalidade aparente, mas poucos homens foram tão gentis comigo enquanto estávamos a sós. Não era amor, era só desejo. Um desejo forte, que ambos adorávamos satisfazer.  Ele me colocou um apelido ridículo, “Sininho” apenas por conta dos gritos de prazer que costumava dar. Mais tarde ele descobriu um personagem infantil com esse mesmo nome, e para ele, apenas aumentou a graça desse nome. Nunca gostei do apelido, mas certas marcas somos obrigados a carregar por toda a vida, e esse nome ridículo foi uma dessas marcas.
-  Numa noite estava acompanhando ele, o bando o chamava de Mandacaru, e com a gente estava um rapaz novo que havia acabado de entrar para o bando, chamado de Bode. Íamos para Angicos, encontrar com Lampião. Deixamos o Bode arrumando o fogo e nos afastamos para realizarmos nossos próprios desejos e quando voltamos foi a hora que aconteceu. Alguma coisa riscou o céu, uma estrela cadente ao algo assim, nos jogamos no chão e o pó que caia daquela coisa nos cobriu. Na hora não percebemos nada de errado, mas uns dias depois, quando já estávamos com Lampião em Angicos eu descobri o que havia acontecido conosco. O bando foi massacrado, eu mesmo tomei alguns tiros e apaguei achando que ia morrer, apenas para acordar um tempo depois como se apenas tivesse caído no sono. Tentaram nos matar outras vezes, mas era sempre a mesma coisa, acordando como se nada tivesse acontecido. Fomos levados para o Rio da Janeiro e nessa hora o presidente da época, Vargas, teve sua grande idéia. Na época o Brasil ainda era bastante despovoado, lugar fácil para certas criaturas extrapolarem. Eu mesmo, já havia ouvido histórias sobre monstros que só conhecida da literatura de cordel. Esses monstros eram reais,e descobri que haviam abusos sendo cometidos. Famílias inteiras mortas por um lobisomem, pessoas perdidas na florestas que morriam de fome unicamente por conta de caprichos de curupiras. Meu trabalho, o de Bode e de Mandacaru deveria ir atrás daquelas criaturas que apareciam demais, que chamavam atenção demais sobre si ou que incomodavam as pessoas erradas. Também fazíamos alguns serviços mais sujos, eliminando cidadãos indesejados. Criaram uma divisão pra gente dentro do órgão de Inteligência da época. Sabe, esse órgão já mudou de nome tantas vezes que eu nem ligo mais, apenas faço meu trabalho. Fui treinada pelos melhores, eu e meus companheiros, por assim dizer, e sinceramente, sou ótima no que eu faço pelo que você pôde perceber. O problema é que as vezes eu tenho uma tendência a ser cruel demais. Sabe, por ter sido violentada eu tenho um ódio especial por pessoas que fazem esse tipo de coisa, ainda mais quando o filho da puta faz isso com crianças.
            Nesse momento um brilho cruel brotou nos olhos de Iaciara, e ela parecia estar voltando a se divertir com aquilo. Pegou uma das facas sobre a mesa e rasgou o rosto do boto de forma humana. O rasgo foi feito da testa ao queixo da criatura, que gritou de dor ao ter a metade direita do rosto retalhada. O sangue escorria e manchava a roupa suja do Boto.
            Iaciara se afastou, adorando cada momento, vendo a expressão de dor no rosto dele. Ainda com a faca nas mãos, voltou em direção a criatura e rasgou sua calça. Pegou aquele órgão sexual que havia violado tantas meninas inocentes, cravou a faca na altura da base e veio rasgando por todo o corpo em direção ao prepúcio, dividindo o pênis em duas metades.
            O boto gritava, chorava e se contorcia de dor, e ela apenas olhava, vendo o sofrimento e a poça se sangue que se formava ao redor da cadeira na qual ele estava preso. A arraia, ainda no tanque, apenas via aquilo, estava paralisada em silêncio e pânico, já o poraquê estava morto, sufocado pela falta de água.
            O boto implorou por sua vida, dizendo que nunca mais faria nada com nenhuma outra criança. Implorou dizendo que voltaria para o rio e jamais tomaria a forma humana novamente, mas isso não era suficiente. Ele havia estuprado crianças em troca de longevidade e precisava pagar por isso. Centenas de crianças haviam sido abusadas e ele iria sofrer por cada uma delas.
            Ao fim de toda uma manhã de gritos, dor e sangue, Iaciara finalmente se deu por satisfeita. Enfiou a faca fundo no respiradouro no topo da cabeça humana do boto, torceu, e esperou os últimos espasmos antes da morte.
            Soltou o corpo da cadeira, que caiu inerte no chão. Aos poucos o corpo do homem voltou a ser um boto rosa do Amazonas, jazendo morto no chão da cabana.
            Nesse momento Iaciara, vendo o animal morto no chão, soltou um riso e repetiu para si mesmo:
- Merda, espero não ter problemas com o IBAMA. Acabei de matar uma espécie em extinção. Acho que cometi um crime ambiental. Mas isso é um problema para o General resolver.
            E saiu em direção a porta da cabana, não sem antes quebrar o aquário de vidro onde a arraia estava, deixando-a sufocando até a morte no chão.



* Poraquê é um peixe eletrônico da região do Amazonas. Procure no Google.


Sangue Negro

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            Na hora que acordou ele tinha certeza apenas de uma única coisa: era noite! Ele sabia que era noite porque estava acordado, e ele só acordava de noite, não importava o que acontecia. Aos poucos seus olhos se abriram e ele pode encarar o local, que parecia ser um pequeno galpão sabe-se lá onde, com uma única fonte de luz que estava sobre sua cabeça.
            Tentou se levantar e foi a hora de descobriu que estava preso, pior ainda, estava sentado numa cadeira e preso por grossas correntes, que nem sua força sobre-humana conseguia partir. Também sentia todo o seu corpo dolorido, sendo que haviam hematomas por todo o seu corpo extremamente branco. Ele nem sabia que ainda era capaz de ter hematomas, afinal a última vez que tinha entrado numa briga ainda morava nos arredores de Belfast e não tinha sua condição, digamos, “peculiar”.
            Demorou pouco para perceber que a pessoa que o prendera ali sabia muito sobre sua condição. Sabia sobre sua força e principalmente sabia sobre suas limitações. Como durante o dia seu corpo ficava completamente inerte, não reagindo a nenhum estímulo, quem o prendera ali deveria tê-lo pego durante o dia, espancado brutalmente seu corpo, e, antes do por do sol, tê-lo prendido ali. Admitia que essa era uma estratégia muito esperta, mas não tinha idéia de como tinham chegado até o seu esconderijo, afinal depois de todos aqueles anos ele já sabia como se esconder.
A suas costas conseguia ouvir o barulho de ferro e algo sendo afiado num esmeril, e foi nessa hora que começou a ficar assustado com toda aquela situação. Tinha certeza que ali estava uma pessoa pronta para matá-lo. Pensou seriamente que aquela poderia ser a sua última noite, e sem nem pensar direito chegou a conclusão de que deveria tentar conversar com seu captor, ou pelo menos pensava que aquela pessoa era seu captor, se tivesse uma brecha, um pequeno “vacilo”, poderia usar essa oportunidade para escapar.
Tentou gritar, mas sentiu uma dor na garganta, como se alguém lhe tivesse batido com força nesse lugar. O máximo de som que conseguia era um leve sussurro, rouco, mas ainda assim, audível. Nisso, uma voz veio de algum lugar as suas costas:
- Se apoquente não. Daqui a pouco vou ai falar contigo.
            Essa voz parecia tranqüila, monótona, quase como se estivesse falando algo de rotina. Era grave e possuía um forte sotaque do nordeste do Brasil.
            Tentou mais uma vez se debater e tentar escapar, mas apenas sentiu o peso das correntes que o prendiam. Nessa hora, a voz as suas costas voltou a soar:
- Se eu fosse você não tentava sair não. Você ta fraco, sem sangue e muito bem preso. Nem com reza você sai daí.
            Não havia mais o que pudesse fazer, não havia uma forma de escapar dali, pelo menos não naquele momento. Se resignou e esperou que aquela pessoa que estava com ele nesse lugar fosse em sua direção.
            Pouco tempo depois, ouviu passos vindos de trás de si. Vinha devagar e soava despreocupado e mais uma vez a idéia de rotina veio a sua cabeça. Finalmente, seu captor, ao que tudo indicava, parou a sua frente. Era um homem alto e magro, com mais de 1,90 de altura, a pele era morena e os cabelos bem pretos e lisos na altura do pescoço. Aparentava não ter 30 anos, mas um início de calvície despontava em sua testa. Usava uma calça preta e uma camisa social de mangas compridas dobradas até os cotovelos da mesma cor, os botões da camisa também eram pretos, e o único adorno que a roupa possuía era um pequeno símbolo no lado esquerdo sobre o peito: três estrelas, bordadas com linha dourada, duas no mesmo nível e uma acima, em conjunto as estrelas formavam um arco na horizontal. Contrastando com a sobriedade da roupa, aquela figura usava anéis dourados e prateados em todos os dedos de ambas as mãos, todos com pedras brilhantes que pareciam ser verdadeiras e as vezes mais de um anel em cada dedo. Usava um perfume de marca boa, provavelmente importado, mas numa quantidade acima da aceitável. Também trazia em sua mão um punhal com lâmina de secção triangular, o cabo era muito bem trabalhado e parecia ser incrustado de algumas pedras preciosas vermelhas, provavelmente rubis. Ao todo o punhal deveria ter uns 80 cm. Essa figura chegou, se aproximou e disse calmamente:
- Você ainda consegue falar, mas vai ter que falar baixo. Você não vai conseguir gritar. Agora me diz qual seu nome.
            Aquilo não era uma pergunta, era uma ordem. Com esforço e ainda com muita dor respondeu numa voz carregada de sotaque irlandês:
- Sou Seamus. Seamus O’Donovan
            A resposta veio junto com um sorriso:
- Diabo de nome complicado que você tem. Agora tenho certeza que você não é desse país. Me chamo Francisco José da Silva, mas pode me chamar de Mandacaru. O nome não é por conta dos espinhos e sim por conta da altura. Sempre fui mais alto do que as pessoas que eu conhecia, e um mandacaru pode chegar a ter mais de 5 metros. O apelido foi inevitável durante os anos no cangaço.  
            Mandacaru estava sendo sincero, e isso podia ser percebido pelo tom de sua voz, na maneira como falava. Ele parecia não ter motivos para esconder aquelas informações. Nesse momento Mandacaru continuou:
- Olha, nós vamos passar um tempo aqui até eu estiver com tudo pronto pra te matar. Então que tal me contar um pouco sobre você? Vai contando sua história que eu vou ouvindo. Você pode até não me ver, mas tenha certeza que eu to de ouvido ligado pra tudo que você falar. Eu já sei teu nome, mas de onde você veio? O que te traz aqui, aos arredores de Brasília?
            Seamus não sabia o que dizer. Aquele homem não tinha motivos para querer aquelas informações, afinal ele havia confirmado de que ia matá-lo. Mas essa poderia ser a brecha que estava esperando, se contasse a sua história de vida quem sabe poderia distrair aquele homem todo vestido de negro e assim conseguir escapar dali. Como uma última tentativa de preservar sua vida, resolveu contar parte de sua história, mesmo tendo dificuldades em falar:
- Você quer realmente saber a minha história? Isso é algo estranho de alguém que já disse que quer me matar... mas tudo bem. Eu nasci numa fazenda perto de Belfast, Irlanda, acho que por volta de 1820, não haviam registros de nascimento para pessoas pobres como eu. Na época essa história de Irlanda ou Irlanda do Norte não fazia a menor diferença, o que importava é que eu vinha de uma família de 11 irmãos e plantávamos batatas. As terras não eram nossas, eram arrendadas de um rico proprietário que ficava com boa parte do que produzíamos e na época produzíamos muito pouco. A fome matou metade dos meus irmãos, mas não a mim. Sobrevivi, casei, e com vinte e poucos anos eu já estava como meu pai: tinha cinco filhos, uma esposa grávida e quase nada pra comer.
            Mandacaru parecia realmente interessado, mas não parecia dar nenhuma brecha para um ataque. O punhal reluzia sob a única fonte de luz do lugar e Seamus estava fraco. O irlandês não conseguiria se soltar e pode apenas continuar a história pensando em seu interior numa forma de escapar:
- E aí veio a Grande Fome. Alguma doença matava todas as plantações de batatas, e isso eram as únicas coisas que tínhamos para comer. A fome levou minha mulher e a criança que ela tinha dentro de si. Desesperado tentei encontrar algo nas cidades para comer, mas todos também estavam famintos. Já era noite quando um homem bem vestido se aproximou de mim e disse que poderia saciar a minha fome. Ele veio pra cima de mim, e com muita força me agarrou e me mordeu. Não lembro de muita coisa depois disso, mas assim que ele me soltou eu corri o máximo que pude e voltei para casa. Apaguei durante todo o dia seguinte e meus filhos acharam que eu estava morto, porque eu não mais respirava. Acordei com o cair da noite, e com uma tremenda fome, que nenhuma comida poderia saciar. Eu estava irracional, como um animal, e acabei matando e bebendo o sangue de cada um dos meus cinco filhos e de um padre que estava benzendo meu corpo.
            Nessa hora Mandacaru olhou para Seamus. O olhar não tinha nenhum tipo de piedade, apenas estava curioso para saber o resto. Mandacaru perguntou:
- Mas e o que você ta fazendo aqui? Brasília é meio longe de onde você morava? O que te trouxe ao Brasil?
            O vampiro respondeu:
- Bem, eu havia matado meus filhos. Achei que não mais conseguiria viver naquelas terras. Sai daquele lugar e me dirigi ao porto mais próximo. Arrumei um caixote velho e todo fechado, desses para transporte de carga. Me enfiei dentro e me despacharam. Ratos me serviram de alimento durante os meses que a viagem durou. Queria chegar em Buenos Aires, mas quando vi, fui descarregado no Rio de Janeiro. Vivi um tempo naquela cidade, aprendi português, matei algumas pessoas... Eu já havia matado meus filhos, matar outras pessoas era fácil, ainda mais que, com o passar do tempo, eu as via como alimento apenas. Alguns anos depois encontrei com outras criaturas como eu, outros vampiros. Eram um ou dois, mas eles deixaram claro que iam acabar comigo se eu continuasse naquela cidade. Disseram que existiam poucas pessoas para alimentar todos nós sem chamar atenção. Pensei em enfrentá-los, mas era estranho, ao olhar para eles me senti impelido a fugir dali. Olhar para eles fez com que eu sentisse um medo que eu nunca mais senti igual, era um medo irracional. Não poderia ficar ali e arriscar um novo encontro pois tinha certeza que eles poriam um fim na minha existência. Nisso fugi e fiquei vagando pelo país todo. Há uns cem anos atrás cheguei a essa região. Era erma, distante, pessoas desapareciam com facilidade e havia pouca policia. O problema é que construíram Brasília nesse meio tempo, e sabe, isso não foi um problema de verdade, pelo menos não no começo.
            Seamus parou um pouco por conta da dor na garganta. Sentiu a garganta queimando, mas continuou:
- Brasília ainda estava sendo construída, e muita gente, do país todo veio para cá em busca de trabalho na construção da nova capital. Acabou que ficava mais fácil sumir com as pessoas. Diziam que um havia caído no meio de uma obra, outro havia desaparecido no mato. Respostas simples e que as pessoas acreditavam. Nunca me alimentei tão bem na minha vida. Mas o tempo passou e a cidade cresceu, e já não era mais tão fácil sumir com alguém sem levantar suspeitas. Por sorte, a pobreza empurrou as pessoas para esse tal de “entorno”, essas cidades pobres do Estado de Goiás que ficam ao redor do Distrito Federal. Essas eram outras terras, terras sem lei, onde pessoas sumiam e os outros mal se perguntavam o que tinha acontecido por medo de serem alvo de bandidos, e mais uma vez pude ficar bem alimentado. Conseguia me esconder em casas abandonadas no meio de fazendas ou em algumas cavernas que existem por aqui. Com os anos, eu meio que me tornei uma lenda. As pessoas mais simples contam histórias de uma criatura branca que some com aqueles que andam no meio do mato sozinhos. E sabe? Essa fama é boa, ajudava a esconder meus refúgios e ajudava a encobrir meus rastros. E minha vida foi assim, até que você chegou. Nem sei como você me capturou nem como me prendeu aqui. Mas será que agora não é a sua vez de contar a sua história? Será que você não pode me dizer como me achou? A caverna onde eu estava não era conhecida por ninguém dessa região.
            Mandacaru sorriu, pois sabia que mais cedo ou mais tarde ia acabar chegando a essa situação. Quando ele pedia que eles lhe contassem suas histórias, no fim eles sempre pediam a mesma coisa: que ele contasse a história dele. Mas isso não era incômodo algum, era sempre divertido lembrar-se de como tudo havia acontecido. E então, começou:
- Se você quer mesmo saber, eu nasci no interior de Alagoas, numa fazenda que a muito já deve ter desaparecido. Também não sei direito a época em que nasci pelos mesmos motivos que você, mas foi por volta de 1920. E também como você, eu sabia o que era fome. Desde menino não se tinha muito para comer, só os coronéis é que tinham fartura e pro povo só sobrava migalha. Com uns 14 anos eu sai de casa e fui me juntar a um bando de cangaceiros. Sai no meio da noite para minha mãe não descobrir e nunca mais vi nem ela, nem meu pai nem nenhum dos meus 13 irmãos. É, é muito irmão, mas televisão só foi inventada muito tempo depois e diversão de pobre sempre foi fazer menino. O cangaço foi uma época boa, mas não pense que nós éramos heróis. Não éramos, éramos bandidos. Mas ser bandido no cangaço ainda era melhor do que trabalhar de sol à sol e ainda passar fome. Como cangaceiro pelo menos eu comia três vezes por dia. Nesse ponto minha vida não era das mais interessantes, uns crimes aqui, umas ameaças ali e ia levando a vida. A coisa toda mudou em 1938. Nessa época eu já fazia parte do bando de Lampião. O Capitão já era conhecido no Brasil todo e fazer parte do bando dele era uma honra, mesmo porque ele nunca andava com mais de 50 homens. Eu era um deles, e me enchia de orgulho estar ao lado dele...
            Nesse momento Seamus interrompeu, com um misto de curiosidade e dissimulação:
- Então você é igual a mim? Porque você parece ser novo demais para ter todos esses anos.
Nisso Mandacaru respondeu:
- Com certeza não sou como você. Não tenho essa pele branca de defunto nem fico bebendo sangue e matando gente por aí. Mas como eu fiquei assim era algo que eu ia te contar, mas você me interrompeu. Continuando, num dia estava eu acampado no meio do mato com Sininho e o Bode. Sininho era uma linda mulher que acompanhava a gente de vez em quando, sempre que ela aparecia no meio de um bando estava com um homem diferente, e pra minha sorte naquele dia o homem dela era eu. O nome dela eu não sabia, mas o nome Sininho vinha porque o homem que soubesse como tocar o sino que ela tinha no meio das pernas fazia com que ela gritasse mais alto que o sino de qualquer igreja. E como ela gritava gostoso quando tava comigo. Já o Bode era um rapaz novo, meio franzino, com pouco tempo de cangaço e uma barba que só crescia no queixo, daí o apelido. Era noite e o Bode estava ao redor da fogueira e eu tinha acabado de voltar do meio do mato com Sininho. Estávamos reunidos ali, em Sergipe, indo pra Angicos pra encontrar com o Capitão Lampião. Mas algo estranho aconteceu. Uma estrela riscou o céu, e vinha descendo, só que vinha descendo em nossa direção. Ela crescia cada vez mais, uma bola de fogo vindo do firmamento. Caímos no chão, achando que aquilo ia cair em cima da gente, mas ela se desfez no ar e virou apenas um pó dourado que caiu por cima de nós três. Rimos, praguejamos e depois rimos de novo. Nenhum de nós era muito religioso, por isso ninguém falou de Deus naquela noite, mas com certeza tinha algo do tinhoso naquilo, o que só descobrimos um tempo depois.
            Mandacaru parou e foi tomar um gole de água numa mesa atrás de Seamus. Não parecia preocupado com qualquer tentativa de fuga. Continuou, sabendo que o vampiro estava bem preso numa cadeira as suas costas.
- Nos encontramos com o Capitão uns dias depois, mas isso não foi algo bom. Estávamos já a uns dias na fazenda Angicos, era noite, dia 27 de julho de 1938, um dia triste que eu nunca  vou esquecer... Fomos traídos e um bando de macacos, policiais da volante de caçava Lampião, nos cercaram. O capitão foi um dos primeiros a morrer e eu tomei um monte de tiros. Sininho também. Lembro que ainda vi o Bode chorando perto de Sininho e pagando a arma dela. O mundo ficou escuro e eu achei que ia morrer. Mas acordei umas horas depois. Os homens da volante estavam jogando nossos corpos numa carroça e eu me vi cercado por amigos mortos. Só que o Bode e a Sininho também acordaram nessa hora. Os macacos ficaram assustados e atiraram na gente de novo e eu apaguei mais uma vez, só pra acordar algumas horas depois. Acordei e tentaram me matar, dessa vez com uma facada e mais uma vez eu apaguei e acordei de novo um tempo depois. Aqueles homens eram meio burros, porque demoraram um tempo pra entender que eu simplesmente não morria. Nem eu, nem Bode nem Sininho. O Coronel João Bezerra, líder da volante, não sabia o que fazer com a gente. Nos prenderam e nos mandaram pro Rio de Janeiro, não sem antes obrigar a gente a assistir aquele bando de filho de uma égua cortar a cabeça do Capitão Lampião e de Maria Bonita.
            Lágrimas pareciam brotar nos olhos de Mandacaru. Não importa o número de vezes que ele contasse aquela história, sempre tinha vontade de chorar quando falava do finado Capitão. Enxugou as lágrimas e voltou para a frente de Seamus, sabendo que ele não poderia ter visto seus olhos marejados. Continuou:
- No Rio de Janeiro fomos levados para uma base do exército. Ainda não sabiam o que fazer com a gente, até que o presidente em pessoa tomou a iniciativa. Visto pessoalmente Vargas não era assim tão impressionante, mas nos fez uma proposta irresistível. Ele estava preocupado com algumas questões políticas, alguns casos de bagunça pelo país todo e nós três seríamos uma espécie de força especial de inteligência para combater algumas ameaças. A gente ia trabalhar pro Conselho de Defesa Nacional, um troço que mudou muito de nome de lá pra cá, sendo que já foi SFICI, SNI e agora chamam de ABIN, Agência Brasileira de Inteligência. No começo foi difícil pra mim, afinal eu era um bandido que agora ia ser polícia, mas minha família não se lembrava de mim, não tinha ninguém no mundo que realmente ligasse pra mim, meu preço para aceitar aquilo foi até baixo, disse que sim se me dissessem que foi que traiu Lampião. Me disseram, e sabe, eu demorei uns três dias para matar o filho da puta. Ele pediu pela vida e sangrou feito um porco. O que os outros pediram eu não sei, eles nunca me contaram, mas sei que depois daquilo começamos a ser treinados. Estados Unidos, França, Inglaterra e mais recentemente Israel e Alemanha, já treinei com forças militares desses lugares todos e nenhum homem deles dá dentro comigo, sou muito bom no que eu faço. Meu trabalho é acabar com gente como você, que acha que não está sendo notado. Assassinos e outros incômodos, sobrenaturais ou não, quando chamam atenção demais eles sempre somem e somos nós que fazemos eles sumirem. Em serviço sempre usamos esse símbolo, as três estrelas em arco, são as estrelas que tinham em todo chapéu de cangaceiro, um lembrança nossa para sempre sabermos de onde viemos. E quanto a você, bem, você andou matando gente demais, lendas são contadas sobre você nessa região, sobre um monstro branco que mata a noite. Você chamou atenção demais e está na hora de sumir. Você deixa rastros e marcas por aí, um policial comum não seria capaz de seguir, mas eu sou. Encontras a sua caverna foi fácil, te espancar enquanto você tava dormindo mais fácil ainda. Difícil foi te trazer pra cá durante o dia sem deixar o sol te queimar. Eu poderia deixar você esturricar ao sol, você ia morrer de qualquer jeito, mas aí eu não ia ter o prazer de ouvir a tua história e, é claro, ter o prazer de te matar olhando no teu olho.
            Nesse momento Mandacaru pegou seu punhal, cravou no peito do vampiro e torceu, cortando o coração da criatura. Um sangue negro e viscoso escorreu pela lâmina e impregnou a mão de Mandacaru, que nesse momento exclamou:
- Inferno de criatura lazarenta. A porcaria desse sangue negro sempre dá trabalho pra limpar.

As esperanças de fuga de Seamus foram em vão. Sua existência se encerrou e seu único consolo na morte foi ter ouvido a história do homem que o capturou.