A vida não tinha sido das mais fáceis para João. Nasceu numa cidade do interior do Ceará, mudou-se para São Paulo quando criança, pois o pai buscava um emprego melhor do que a lida na roça. Trabalhou de pedreiro a vida inteira, acordando cedo, chegando em casa cansado e sem muita perspectiva de melhora. Nunca se casou, apesar de já ter tido algumas mulheres, também nunca teve filhos, pelo menos não filhos que sabia existirem. Agora aos 68 anos estava velho, cansado e completamente sozinho. Vivia triste e solitário, amargurado, seu único contato com outros seres humanos costumava ser em filas de hospitais e brigando com as crianças da rua que insistiam em jogar futebol justamente em frente sua casa. Ele era um velho solitário e rabugento, que vivia dizendo que a vida havia sido dura demais com ele. Esse tipo de vida que levava acabou por ser um problema, afinal, quando João morreu, sozinho em sua cama durante o sono, só descobriram o corpo quase uma semana depois, apenas por conta do mal cheiro. Enfim, aquela não tinha sido uma vida fácil.
Em outro lugar em outro plano de existência, algumas criaturas, cuja forma nossas mentes humanas são incapazes de imaginar, conversavam animadamente entre si:
- E aí? Como foi essa sua última vida?
- Ah, eu achei divertido, nunca tinha vivido uma vida triste. Foi a primeira vez que vivi uma vida desse jeito...
- Tá, mas conta mais.
- Bem, eu fui um cara chamado João. Solitário, sem filhos nem esposa que passou um monte de problemas na vida. Um sujeito bem besta na minha opinião. Ele sofreu muito e tal. Foi legal ser ele, porque foi diferente, mesmo quando encontrava uma vaga em vidas ruins sempre tinha alguma coisa que era divertida. Essa foi ruim do início ao fim, hehe.
- Sério? Achei que você tinha dito que gostou.
- Mas eu gostei. Foi como disse, foi divertido fazer algo diferente. Mas e você? Como foi a sua última?
- Ahh, eu acabei sendo um empresário bem sucedido, até bem feliz. Não gostei muito não. Te recomendei essa vida triste porque eu gosta mais dessas. Tipo, já vivi muitas vidas felizes, hoje em dia só essas tristes me dão emoção de verdade. Pra falar a verdade essa minha última vida foi bem sem graça...
- Não sei como você pode dizer isso. O drama todo que eu vivi foi legal e tal, mas nem é tão divertido assim. Acho que nunca vou entender essa sua fixação pela tristeza, hehe.
- Não é fixação pela tristeza. Na verdade é só porque ela costuma ser mais interessante de ser vivida. Esse povo que escolhe vidas felizes e tal, acaba que no final é tudo muito parecido. Apenas vivendo as vidas tristes é que conseguimos algum tipo de emoção de verdade.
- Ahh, fale por você. Eu gosto de umas vidas mais alegres. Gostei da experiência, tem seu charme e tal. Mas as vidas felizes parecem que passam mais rápido e você me conhece, eu adoro ficar mudando de vidas. Muito tempo em uma vida só me enjoa.
- Já eu acho que todos são muito curtas. Acho que você ta falando besteira. As tristes são mais divertidas, tem mais opções. A felicidade é sempre uma só, enquanto a dor e o sofrimento ocorrem de várias formas.
- Creio que nós não vamos conseguir convencer um ao outro né?
- Pelo visto, acho que sim. Vamos deixar essa conversa de lado. Acabou de sair a lista das novas vidas que vamos poder escolher, tô de olho em uma que parece que vai ser divertida: um cara que ao final da vida morre abandonado pelos filhos, não li o resumo completo, mas só esse pedaço já me chamou a atenção.
- Você e essas suas vidas tristes, hehe. Eu ainda não sei o que escolher, vou dar uma olhada na lista, mas com certeza, não tenho os mesmos gostos que você.
- É uma pena, mesmo porque você sabe que eu sou maioria. A maioria de nós acha mais divertido as vidas tristes, por isso essas sempre tem de sobra pra escolher.