Forma Alternativa de Resolução de Conflitos

sexta-feira, 16 de março de 2012 | Published in | 0 comentários

            A idéia por trás de todo o ordenamento jurídico é sugerir uma forma pacífica de resolução de conflitos, contudo essa idéia foi um pouco posta de lado nas primeiras décadas dos anos 2000.
Ninguém sabe ao certo como começou, mas as lendas urbanas contam sobre dois jovens, sócios de uma academia de artes marciais. Como acontece com muitas sociedades, eles brigaram e resolveram encerrar a parceria, mas a forma como a parceria seria encerrada gerou mais discussões do que os motivos que os levaram inicialmente a brigar. Ambos procuraram advogados e, devidamente orientados, começaram a se movimentar para juntar as provas e darem entrada num processo. Porém, ambos sabiam que o processo seria longo, desgastante e cansativo. Um belo dia, ao se encontrarem na academia, que a essa altura já estava fechada, um deles propôs resolverem o conflito com uma luta. O outro, meio relutante acabou topando. Chamaram amigos para servir de testemunhas, contrataram um juiz isento, e sob as regras do MMA resolveram seus conflitos legais. Quem ganhou a luta não importa muito, o importante é que essa história acabou abrindo um precedente.
As pessoas que viram essa luta acharam que aquela poderia ser uma boa forma de resolver um conflito. Podia não ser a mais justa, mas com certeza era mais rápida do que um processo judicial. E assim, a solução de alguns conflitos envolvendo as testemunhas daquela primeira luta acabaram também sendo decididas em cima de um ringue e sob as regras do MMA.
Pouco tempo depois, essa idéia acabou indo parar até mesmo em pessoas que nada sabiam sobre lutas. Essas pessoas acabavam por contratar lutadores profissionais para lutarem por elas, tudo sob regras rígidas. Os combates iam somente até o nocaute dos contendores, afinal se houvessem mortes isso algo bem mais grave.  
Essa forma de resolução de problemas acabou se tornando um meio popular para a solução de controvérsias. Era mais rápido e principalmente não submetia as partes a terem que se deslocar a fóruns onde pessoas que não as conheciam ficavam no alto de um palanque usando uma capa preta e dizendo quem tinha razão. Resolver as coisas em cima de um ringue, seja diretamente ou por meio de um representante, parecia ser mais natural, menos burocrático. Era com certeza algo mais próximo das pessoas do que os protocolos exagerados do judiciário comum. E o mais estranho é que quando as contendas eram resolvidas assim a parte derrotada nunca procurava o judiciário, parecia que um vestígio de honra ainda existia nas pessoas que resolviam os conflitos daquela forma.
Devido a essa simplicidade, as assim chamadas “lutas judiciárias” se tornaram bastante populares. Lutadores profissionais acabavam fazendo um bom dinheiro participando de lutas clandestinas para resolver conflitos em nome de outras pessoas.
A popularidade das lutas judiciárias, após alguns anos, chegou a ponto de que não mais poderiam ser ignoradas. Quase todos os juristas eram unânimes em dizer que era um absurdo se resolver os problemas assim, e em pouco tempo essas lutas foram proibidas. Mas a proibição não coibiu, e o número de lutas só crescia a medida que os velhos processos de papel diminuíam.
Então, após longos anos de discussões acirradas, pareceres contrários e a favor. Foi aprovada a Emenda Constitucional n.º 93, que declarava como sendo uma “legítima forma de solução de conflitos” as lutas judiciárias.
Pouco tempo depois da Emenda, foi aprovada a lei n.º 19.385 que dispunha sobre as formas como a luta judiciária ocorreria. Um decreto regulamentador serviu para unificar as regras, fixando as formas de combate, os limites, os golpes que poderiam ser aplicados e tudo necessário para a preservação dos combatentes e a manutenção das decisões e resultados das lutas.
A OAB, como não poderia deixar de ser, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei mencionada acima. Não por achar cruel ou desumana aquela forma de solução de conflitos, mas sim porque as pessoas estavam sendo contratadas para subir ao ringue e representar as partes não eram advogados.
Após alguns meses de discussão, no qual as lutas deveriam ser suspensas (pelo menos oficialmente) o STF firmou posicionamento favorável a tese da OAB. Os lutadores contratados para representar as partes deveriam ser formados em direito e inscritos nos quadros da OAB da localidade em que atuavam. Os lutadores estavam submetidos as mesmas regras que os advogados que trabalhavam com papel e deveriam pagar anualmente sua contribuição para a ordem.
Essa decisão causou um rebuliço nas lutas. Centenas de lutadores correram para se inscrever na primeira faculdade de direito que encontraram. Tentavam de todo modo conseguir se qualificar como estagiários e assim conseguirem uma carteira da ordem compatível com essa condição e poderem voltar aos ringues. Grandes escritórios viram nisso uma oportunidade e passaram a cooptar esses lutadores e a criaram academias dentro do próprio escritório para servirem de base para aqueles que optarem pela “forma alternativa de resolução de conflitos”, expressão pela qual as lutas judiciárias passaram a ser conhecidas. Em outros casos, pequenos escritórios eram abertos no mesmo local que academias de MMA, e assim as pessoas poderiam avaliar se seria melhor uma defesa na justiça comum ou optar pela forma alternativa.

O tempo passa e os seres humanos costumam se adaptar rápido as mudanças sociais, e com essa não foi diferente. Após um período inicial de discussão, a forma alternativa de resolução de conflitos passou a fazer parte do dia à dia da sociedade. Após ser citado, a parte podia optar em procurar um advogado comum ou escolher um “causídico pugnatorum”, como ficaram conhecidos os advogados lutadores (o fato de lutadores em latim ser pugnatorum com certeza influenciou a escolha do nome). Se a outra parte concordasse (essa concordância era condição necessária para que a forma alternativa fosse possível), o julgamento seria feito dentro do ringue. Os autos seriam remetidos para uma vara especializada nesse tipo de conflito e a luta seria agendada. O juiz da luta seria um juiz togado, aprovado em concurso público de provas e títulos que tinha conhecimento tanto em direito quanto nas regras do MMA. A parte poderia escolher entre contratar um desses advogados lutadores ou ela mesma entrar no ringue, o que não costumava ser muito comum nem recomendável.
Se a luta ocorresse dentro das regras, o resultado era irrecorrível. Se o lutador fosse desclassificado por alguma conduta ilegal, era possível recurso para uma turma julgadora que iria analisar se a desclassificação fora correta ou não. Da decisão da turma julgadora cabia recurso apenas para o STF.
Essa forma alternativa de resolução de conflitos trouxe a vantagem de tornar o judiciário um pouco mais acessível e interessante ao cidadão comum. As audiências de luta costumavam ser eventos disputados pelo público, sejam estudantes de direito ou não. As matérias relativas aos pugnatorum eram ensinadas desde a faculdade e a decisão se seria um causídico comum ou lutador era tomada pelo estudante na época de fazer o estágio obrigatório.
De outro lado, essa forma era criticada por juristas mais antigos, além de organizações voltadas para os direitos humanos. Outro problemas era que, as vezes, as lutas eram marcadas para 6 meses após a concordância das partes, o que fazia com que a característica original de rapidez fosse por água abaixo. Mas mesmo assim, as lutas continuaram, e passaram a fazer parte do judiciário como qualquer outra forma de solução de conflitos.

João das Neves nunca tinha acompanhado muito essa questão das lutas judiciárias (ou forma alternativa de resolução de conflitos como os mais técnicos gostavam de chamar). Ele preferia uma boa e velha partida de futebol, e quando via algo sobre as lutas pensava se não seria mais interessante contratar um time de futebol para resolver os conflitos. Contudo, ele não iria mais ficar alheio as lutas por muito tempo.
João tinha alguns apartamentos em seu nome. Todos alugados e lhe dando uma renda razoável que complementava sua aposentadoria de servidor público de nível médio. Mas recentemente começou a ter problemas com um dos seus inquilinos.
Havia alugado um apartamento de dois quartos para um jovem e sua mãe. O jovem era um cara alto e forte, dizia que fazia direito e que pretendia ser um dos tais pugnatorum, mas João nunca ligou muito pra isso. Ele ligava para o fato de que o aluguel estava atrasado já haviam 2 meses. O jovem respondia que não iria pagar o aluguel, pois a parede estava com infiltrações e o apartamento estava mal conservado. Essas afirmações não eram mentiras, mas João não ia arrumar nada no apartamento enquanto o aluguel não fosse pago. E assim formou o impasse.
Não teve outro jeito, João contratou um advogado e entrou com uma ação de despejo por conta do aluguel em atraso. Esse jovem, que ele nunca conseguiu decorar o nome, contestou a ação e fez a proposta de resolver os conflitos nessa forma alternativa. Ao consultar seu advogado, eles avaliaram a possibilidade de aceitar a proposta.
O escritório do advogado de João ficava num prédio de três andares, ou melhor um térreo, um andar acima e um terceiro andar subterrâneo. No térreo ficava uma recepção e algumas salas de reunião. No primeiro andar tinham as salas dos advogados e dos sócios que atuavam em formas mais tradicionais do direito. Já o subsolo era um imenso vão aberto, com o chão todo de tatame, um ringue no meio e diversos sacos de areia espalhados. Lá ficavam os advogado lutadores.
Ao conversar com seu advogado analisaram as vantagens do combate. O rapaz adversário atuava em causa própria, era estagiário num escritório e podia lutar conforme recente entendimento do STF, e aquela seria sua primeira luta. Na mesma categoria de peso que o rapaz, havia no escritório um experiente lutador, pouco passado dos 30 anos, mas com um excelente cartel de “sentenças” favoráveis, havia perdido apenas uma luta. As chances eram boas e a solução assim seria mais rápida que um processo normal.
Aceitaram a proposta e a luta foi marcada para dali 3 meses, um prazo rápido levando em consideração a demora naquela época para a marcação.
No dia, como sempre, as arquibancadas do ringue de audiência estavam lotadas. Vários estagiários e estudantes viam as lutas, alguns advogados esperavam sua vez de entrar no ringue, outro reclamava do fato de que um juiz novato é quem estava conduzindo as audiências.
Após pouco tempo chegou a hora da luta do advogado de João. Ele se levantou, tirou o roupão com o símbolo do escritório e entrou no ringue. O rapaz, seu adversário fez o mesmo.
A luta foi rápida, mas nem por isso menos brutal. O advogado mais experiente massacrou o jovem no ringue. O rapaz teve que ser levado de maca, desmaiado para o serviço médico. E vendo aquela cena, uma súbita sensação de justiça se abateu sobre João. Seu advogado havia ganhado a luta e vendo o jovem ser levado ensangüentado, João teve um único pensamento: “Não é que essa tal de forma alternativa é interessante! Acho que foi feita justiça.”